CultureLab: Storytelling 2.0: When new narratives meet old brains
New Scientist 16 November 2010
John Bickle and Sean Keating
"Nós somos nossas narrativas" tornou-se um slogan popular. "Nós" se refere aos nossos eus, no sentido da constituição da pessoa em carne e osso. "Narrativas" se refere às histórias que contamos sobre nós mesmos e nossas expedições em ambientes triviais como uma reunião social (cocktail party) ou sérios como discussões íntimas com aqueles que amamos. Nós expressamos algumas delas através da fala. Outras nós dizemos silenciosamente para nós mesmos, naquela voz interior constante. A coleção completa das narrativas internas e externas gera o eu que conhecemos tão bem. Nossos eus narrativos se desenrolam continuamente.
A neuroimagem de última geração e a neuropsicologia cognitiva sustentam a idéia de que nós criamos nosso 'eu' através da narrativa. Baseado em meio século de pesquisas com pacientes de "cérebros divididos" (split-brain), Michael Gazzaniga argumenta que o hemisfério esquerdo do cérebro humano é especializado para o comportamento inteligente e para a formação de hipóteses. Também possui a singular capacidade de interpretar - isto é, narrar - comportamentos e estados emocionais iniciados por qualquer dos dois hemisférios. Não é surpreendente que o hemisfério esquerdo também seja o hemisfério da linguagem, com regiões corticais especializadas em produzir, interpretar e entender a fala. Ele também é o hemisfério que produz as narrativas.
Gazzaniga também acha que esse "intéprete" do hemisfério esquerdo cria uma sensação unificada de um eu singular, pessoal e autobiográfico. "O intérprete sustenta uma narrativa corrente de nossas ações, emoções e de nossos pensamentos e sonhos. O intérprete é o adesivo que mantém nossa história unificada e cria nosso senso de ser um agente coerente e racional. Para nossa bagagem de instintos individuais ele traz teorias sobre nossas vidas. As narrativas do nosso comportamento passado entremeiam-se com nossa percepção e nos fornecem uma autobiografia", escreve ele. As áreas da linguagem do hemisfério estão bem localizadas para a execução dessas tarefas. Elas se valem das informações da memória (circuitos amigdalo-hipocampais, córtices préfrontais dorsolaterais) e de regiões de planejamento (córtices orbitofrontais). Como demonstrou o neurologista Jeffrey Saver, o dano a essas regiões rompe a narração de diversas maneiras, indo da narração sem limites, na qual a pessoa gera narrativas não condicionadas pela realidade, até a denarração, a incapacidade de gerar quaisquer narrativas, externas ou internas.
Como o intérprete de Gazzaniga produz um eu narrativo? Em 2003, um de nós (Bickle) sugeriu que nossa "voz interna" é a chave. A voz interna pode ser produzida pela atividade corrente das regiões da linguagem do hemisfértio esquerdo, tanto quando os produtos dessa atividade são divulgados através da fala externa como quando eles são expressados silenciosamente através da fala interior.
Um estudo convincente utilizou imagens PET para observar o que ocorre no cérebro durante a fala interior. Como esperado, surgiu uma atividade na clássica área de produção de fala, conhecida como área de Broca. Mas a área de Wernicke também estava ativa, a região de compreensão da linguagem, sugerindo que não só as áreas cerebrais de fala produzem a fala interior silenciosa como nossa voz interior é entendida e interpetada pelas áreas de compreensão. O resultado de toda essa atividade, eu sugeri, é o eu narrativo. Desde então, muitos dados mais de neuroimagem sustentaram essa idéia. Sukhwinder Shergill, psiquiatra do King's College London, contribuiu muito com sua investigação das bases neurais dos sintomas de esquizofrenia, incluindo alucinações auditivas. Gerando e monitorando a fala interior de maneiras engenhosas, seus estudos de fMRI mostraram consistentemente atividade nas áreas neurais envolvidas na produção de fala, compreensão e monitoramento interno durante a fala interior silenciosa. Isto se ajusta bem à idéia de Gazzaniga sobre o papel do intérprete do hemisfério esquerdo na criação do eu autobiográfico.
Se nós criamos nossos eus através de narrativas, sejam internas ou externas, elas são tradicionais, com protagonistas e antagonistas e um relacionamento determinado entre narradores, personagens e ouvintes. Elas têm roteiros lineares com um passado fixo, um presente elaborado coerentemente sobre esse passado, e um horizonte de possibilidades projetado coerentemente sobre o futuro. As tecnologias digitais, por outro lado, estão produzindo narrativas que fogem dessa estrutura clássica. Novas interfaces de comunicação abrem espaço para novas interações e construções narrativas. Domínios de multi-uso (MUDs), jogos de RPG online pesadamente multi-usuários (MMORPGs), hipertexto e cibertexto, tudo isso enfraquece a estrutura narrativa tradicional. As narrativas digitais, em seus extremos, são co-criações dos autores, dos usuários e dos meios de comunicação. Múltiplos pontos de entrada em narrativas continuamente em desenvolvimento estão disponíveis, frequentemente para múltiplos co-elaboradores.
Esses recentes desenvolvimentos parecem tornar possíveis narrativas ilimitadas às quais faltam as características que definem as estruturas tradicionais. Que tipos de eus irão gerar as narrativas digitais? Multilineares? Não-fixos? Colaborativos? Será que esses produtos ainda serão os eus que aprendemos a conhecer e amar?
Por mais complicadas que sejam essas implicações, não devemos nos deixar levar. De uma perspectiva literária, a quebra da narrativa digital com a tradição será tão radical que os produtos não vão mais contar como narrativas - e portanto não serão mais capazes de gerar eus narrativos - ou ainda irão incorporar a estrutura narrativa básica, talvez atenuada, e continuar a produzir eus narrativos reconhecíveis.
Considerações psicológicas sustentam essa questão. As narrativas, e os eus que elaboramos através delas, transmitem nossas perspectivas individuais do "eu-no-mundo". Essas perspectivas incluem a compreensão dos indivíduos de como funcionam causa e efeito, e portanto exigem um ordenamento temporal de eventos importantes que possam ser comunicados a outros. Quase sempre transmitimos redes causais que elaboram nossas vidas de modo que se conformem com um dos protótipos narrativos entendidos quase universalmente, seja o amor romântico, a aventura heróica ou uma triste história de desgraça.Narrativas digitais ilimitadas, incontidas pelo ordenamento temporal e causal bem conhecido, parecem psicologicamente implausíveis como fontes de eus comunicativos e duráveis.
Finalmente, há a perspectiva neuroevolutiva. Gazzaniga sugere que o surgimento do intérprete do hemisfério esquerdo do cérebro fornece uma vantagem evolutiva de reforço continuado de uma nova capacidade para a hipotetização ininterrupta sobre possíveis padrões causais, combinada com uma capacidade mais antiga do hemisfério direito para tomar decisões baseadas em probabilidades. Como diz Gazzaniga, "Uma vez que os eventos mutacionais da história da nossa espécie trouxeram o intérprete para a existência, não havia mais maneira de se livrar dele".
As atividades narrativas correntes nas regiões do hemisfério esquerdo de compreensão e produção de fala e de monitoramento durante a fala externa e interna estão conosco permanentemente. Novas narrativas digitais podem fornecer novos inputs para a construção narrativa de nossas regiões cerebrais de linguagem, mas elas por si só provavelmente não podem alterar nossos eus narrativos. É provável, então, que as narrativas digitais - que estão na superfície modificando a face da literatura - serão no final construídas sobre as narrativas que sempre conhecemos.