Em Um Prefácio a Kierkegaard, Auden nos fala sobre as confluências históricas, filosóficas, religiosas (e outras) de seu pensamento. Fluido como tinta preta esgueirando-se através das moléculas de um copo d'água, Auden nos ilude com argumentos da literatura, da psicologia, da mitologia grega e de outros capítulos do pensamento para que nos deixemos atrair pela 'melancolia' do dinamarquês, e consegue. Permite-nos ver que, na verdade, essa melancolia é apenas um severo olhar sobre a condição humana, que ostenta um livre arbítrio permanentemente posto em xeque por sua transitoriedade, um devir mandatório mediado por escolhas aparentemente inúteis porque eternamente (enquanto durar aquela vida particular) ocupado em rolar a pedra montanha acima novamente. Agora, leia a tradução de um pequeno trecho:
A Preface to Kierkegaard
W. H. Auden
The New Republic, May 15, 1944
"Em contraste com aqueles filósofos que iniciam com considerações sobre os objetos do conhecimento humano, essências e relações, o filósofo existencial inicia com a experiência imediata do homem enquanto sujeito, isto é, um ser em necessidade, um ser interessado cuja existência está em xeque. Ele não afirma, como frequentemente é acusado de fazer, a primazia da Vontade sobre a Razão, mas sua inseparabilidade. Como disse Agostinho: 'Eu sou e sei e quero; estou sabendo e querendo; sei que sou e que quero; quer ser e saber'. Não existe, portanto, um Eu intemporal e desinteressado exterior ao meu eu temporal e finito e que serenamente sabe o que há para ser sabido; a cognição é sempre um ato histórico específico acompanhado por esperança e medo. Compreender isso não é abandonar, por inalcançável, a procura pela verdade comum e compartilhável e render-se a um relativismo subjetivo: ao contrário, é precisamente no interesse de tal verdade comum que faz-se necessário que o indivíduo comece por aprender a ser objetivo sobre sua subjetividade, 'conheça sua posição', torne-se consciente - a cada vez que perguntar calmamente de um objeto ou evento, 'O que é você?' - de um aparte simultâneo, 'Seja isto. Não seja aquilo'.
Desse ponto de vista, o problema humano básico é a ansiedade do homem no tempo, isto é, sua ansiedade atual sobre si mesmo com relação a seu passado e seus pais (Freud), sua ansiedade atual quanto a si mesmo em relação a seu futuro e seus vizinhos (Marx), sua ansiedade atual quanto a si mesmo em relação à eternidade e a Deus (Kierkegaard).
O homem, diz Kierkegaard, não é apenas um ser, como um átomo de hidrogênio, mas também um ser que se torna, e não apenas um ser que se torna, como uma bolota se torna um carvalho, mas um ser consciente que a cada momento deve escolher, através de seu próprio livre arbítrio, uma entre um número infinito de possibilidades que ele prevê. Além disso, cada escolha é irrevogável, isto é, o homem, tanto individual como socialmente, tem uma história; o que acontece a ele não acontece no tempo, o tempo é que acontece naquilo que o homem faz. Daí sua ansiedade, porque ele não pode garantir nem desfazer as consequências de qualquer escolha que faça. O poder através do qual, sem cegar a si mesmo quanto à sua ansiedade, ele ainda assim é capaz de escolher, é a fé religiosa: sem essa fé, ele deve desesperar, isto é, ser incapaz de agir, ou tornar-se um idólatra, isto é, inventar uma ilusão de absoluta certeza a partir da paixão individual de seus humores imediatos (o Estético) ou das abstrações universais de seu intelecto (o Ético). Entretanto, esta tarefa está fadada ao fracasso porque ele não pode confiar em um sem excluir o outro; ele só pode reprimir. Ele não pode se livrar de nenhum dos dois nem evitar que a metade excluida de sua natureza desmascare as pretensões da metade em que confiou, levando-o assim de volta ao desespero".
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Desse ponto de vista, o problema humano básico é a ansiedade do homem no tempo, isto é, sua ansiedade atual sobre si mesmo com relação a seu passado e seus pais (Freud), sua ansiedade atual quanto a si mesmo em relação a seu futuro e seus vizinhos (Marx), sua ansiedade atual quanto a si mesmo em relação à eternidade e a Deus (Kierkegaard).
O homem, diz Kierkegaard, não é apenas um ser, como um átomo de hidrogênio, mas também um ser que se torna, e não apenas um ser que se torna, como uma bolota se torna um carvalho, mas um ser consciente que a cada momento deve escolher, através de seu próprio livre arbítrio, uma entre um número infinito de possibilidades que ele prevê. Além disso, cada escolha é irrevogável, isto é, o homem, tanto individual como socialmente, tem uma história; o que acontece a ele não acontece no tempo, o tempo é que acontece naquilo que o homem faz. Daí sua ansiedade, porque ele não pode garantir nem desfazer as consequências de qualquer escolha que faça. O poder através do qual, sem cegar a si mesmo quanto à sua ansiedade, ele ainda assim é capaz de escolher, é a fé religiosa: sem essa fé, ele deve desesperar, isto é, ser incapaz de agir, ou tornar-se um idólatra, isto é, inventar uma ilusão de absoluta certeza a partir da paixão individual de seus humores imediatos (o Estético) ou das abstrações universais de seu intelecto (o Ético). Entretanto, esta tarefa está fadada ao fracasso porque ele não pode confiar em um sem excluir o outro; ele só pode reprimir. Ele não pode se livrar de nenhum dos dois nem evitar que a metade excluida de sua natureza desmascare as pretensões da metade em que confiou, levando-o assim de volta ao desespero".
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