sábado, 10 de abril de 2010

Memória e Literatura


Look back in wonder é um artigo de Craig Raine no jornal inglês The Guardian. Numa resenha que se inicia cronologicamente no indefectível Proust, Raine mostra como a linguagem artística é o meio por excelência para se lidar com as pegadas que a memória deixa em nossos corpos e nossas mentes (em nossos corações, acrescentarão os românticos históricos). Os mistérios são muitos:

"Por que, para todos nós, de tudo o que já ouvimos, vimos e sentimos através da vida, certas imagens retornam, carregadas de emoção, mais do que outras? A canção daquele pássaro, o pulo daquele peixe, num tempo e lugar especial, o aroma daquela flor, a velha senhora na trilha daquela montanha alemã, seis homens vistos à noite jogando cartas através da vidraça de uma pequena estação ferroviária francesa, onde havia um moinho de água: tais lembranças podem ter valor simbólico, mas não sabemos dizer do que, porque elas representam profundezas de sentimentos que não podemos vislumbrar.

Então, essas lembranças estão sobrecarregadas de sensações. Poderemos descrever essa sensação - de importância, de sentimento sofreado? Poderemos dizer o que significam?"

Raine consegue dizer tudo isso sem falar uma só vez do fluxo da consciência de William James (just checking), mesmo quando trechos de Proust o colocam nessa direção:

"Duas lajotas tortas no pavimento externo da mansão da Princesa de Guermante lembram duas lajotas do batistério de São Marco, em Veneza. O som de uma colher contra um prato relembra o ruído do martelo de um ferroviário testando as rodas do trem de Paris que havia parado perto de um bosque - quando Marcel (20 páginas antes) tinha refletido sobre sua falta de talento para a literatura, um veredito baseado em sua aparente indiferença à natureza. 'Estou em meio à natureza. Bem, mas é com indiferença, com tédio, que meus olhos registram a linha que separa suas frondes radiantes de seus troncos sombrios'. Agora a cena anteriormente tediosa encanta Marcel com suas especificidades previamente imencionadas - abrir uma garrafa de cerveja, ouvir as rodas sendo investigadas. A experiência é experimentada com seus acessórios. E, por fim, a textura de um guardanapo relembra a própria textura da toalha de banho de Marcel em Balbec. O guardanapo contém a toalha, que contém um oceano verde e azul como a cauda de um pavão - o oceano. já que a memória involuntária jamais recorda o artigo indefinido".

Anyways, leia esse excelente artigo e veja como Raine introduz James Joyce, Virginia Woolf e Nabokov nesse caleidoscópio, além de Evelyn Waugh, Saul Bellow, Samuel Beckett, William Wordsworth e alguns outros.