segunda-feira, 5 de abril de 2010

A epistemologia das evidências em neurociência cognitiva

Utilizando três das principais fontes de evidências que ligam processos cognitivos ao cérebro - estudos de lesões, registros de células individuais e neuroimagens, Bechtel chegou à conclusão de que como os resultados envolvem manipulação dos fenômenos sob estudo, os pesquisadores devem se assegurar de que eles refletem de maneira apropriada as operações que compõem os mecanismos cognitivos. Para essa avaliação, os pesquisadores quase sempre recorrem a três características das evidências para poderem identificar (e assim evitar) a criação de artefatos: (1) verificar se existe um padrão definido dos resultados que possa ser produzido confiavelmente; (2) verificar se os resultados são consistentes com resultados produzidos com a utilização de outras técnicas; e (3) verificar se os resultados se ajustam a uma descrição teórica coerente. Leia abaixo os primeiros parágrafos do artigo de William Bechtel, onde ele discute os problemas enfrentados na validação de evidências referentes aos fatos da neurociência cognitiva.

The Epistemology of Evidence in Cognitive Neuroscience
William Bechtel 2004
University of California, San Diego
(To appear in In R. Skipper Jr., C. Allen, R. A. Ankeny, C. F. Craver, L. Darden, G. Mikkelson, and R. Richardson (eds.), Philosophy and the Life Sciences: A Reader. Cambridge, MA: MIT Press).

"1. A Epistemologia das Evidências
Não é segredo que os cientistas discutem. Eles discutem sobre teorias. Entretanto, mais do que isso, eles discutem sobre evidências referentes a teorias. Será que as evidências são confiáveis? Isto é um pouco surpreendente visto a partir da perspectiva das descrições empíricas tradicionais da meotodologia científica, de acordo com as quais as evidências de teorias científicas vêm da observação, especialmente a observação a olho nu. Estas descrições retratam os testes de teorias científicas como uma questão de comparar as predições da teoria com os dados gerados por essas observações., que considera-se que forneçam um elo objetivo à realidade.

Uma lição que os filósofos da ciência aprenderam nos últimos 40 anos é que mesmo a observação a olho nu não é tão correta epistemicamente como se supunha. O que se é capaz de ver depende do treinamento que se tem: um principiante, ao olhar através de um microscópio, pode deixar de reconhecer o neurônio e seus processos (Hanson, 1958; Kuhn, 1962/1970). Mas uma segunda lição está apenas começando a ser apreciada: em ciência, as evidências frequentemente não são procuradas através de simples observações a olho nu, sendo as observações mediadas por instrumentos complexos e sofisticadas técnicas de pesquisa. O que é mais importante epistemicamente sobre essas técnicas é que quase sempre elas alteram radicalmente os fenômenos que estão sendo investigados. Além do mais, a natureza exata dessa alteração quase sempre é pouco compreendida. A pigmentação (com corantes) de Golgi é um exemplo extremo, mas ilustrativo - cem anos depois da introdução do corante de nitrato de prata por Camilo Golgi, nós ainda não entendemos o que é que o liga a apenas alguns neurônios em uma preparação, o que é a própria característica que o torna tão útil em neuroanatomia. O fato de que as evidências são geradas a partir de fenômenos alterados, onde a natureza das alterações nem sempre é bem entendida, faz surgir uma séria questão: em que grau aquilo que é tomado como evidência é apenas o produto da alteração, ou em que casos ele reflete os fenômenos originais dos quais é tomado como evidência? Quando os cientistas levantam a objeção de que a evidência proposital é um artefato, estão afirmando que ela não reflete o fenômeno original da maneira como se pretendeu, sendo antes um produto do modo de intervenção.

Uma razão pela qual, até recentemente, os filósofos não davam atenção às questões epistemológicas relativas a evidências é que eles se concentravam em ciências relativamente estabelecidas. Quando as teorias científicas estão codificadas em livros-textos, as controvérsias sobre evidências apresentadas a eles geralmente já foram resolvidas, e as técnicas e os métodos passaram a ser tratados como 'caixas pretas'. (Isto não significa que os pesquisadores tenham uma compreensão clara de como as intervenções se prestam à busca de evidências, como o caso do corante de Golgi deixa claro). Para apreciar a natureza discutível das evidências, é melhor se concentrar no período quando novas técnicas são introduzidas pela primeira vez. Nesse estágio, acusações de artefatos e razões para se suspeitar de artefatos aparecem frequentemente na literatura, assim como defesas contra essas acusações.

As preocupações quanto a artefatos apontam para uma nova área problemática da epistemologia, a que me refiro como epistemologia das evidências. O desafio para a epistemologia das evidências é entender como os instrumentos e as técnicas da produção de novas evidências são, eles próprios, avaliados. Se os pesquisadores tiveram evidências independentes sobre como as técnicas funcionaram, então teremos uma regressão, mas o procedimento de avaliar epistemologicamente as evidências seria comparável ao de avaliar teorias. Como já foi notado, geralmente este não é o caso. Os pesquisadores regularmente passam a usar novos instrumentos e novas técnicas, e confiam neles, bem antes que haja uma compreensão teórica de como funcionam
".

Leia também:

Progress and Procedures in Scientific Epistemology
Peter Godfrey-Smith 2007
Philosophy Department - Harvard University