domingo, 6 de junho de 2010

Achtung! A memória é ficção

O blog The Frontal Cortex, de Jonah Lehrer (autor do livro Proust era um Neurocientista), postou transantonte um excelente artigo sobre memória, inspirado num experimento do site Slate. Como o texto original é grande e detalhado, deixei o link para que os leitores possam ir lá verificar, e mantive os comentários de Lehrer como base dessa postagem. Vou traduzir trechos selecionados, e se os leitores acharem o fino (como eu achei) é só ler os dois.

Memory is Fiction

"No site Slate, William Saletan terminou uma série maravilhosa sobre as distorções e desonestidades da memória. Ainda que as lembranças sempre pareçam verdadeiras, elas são extremamente vulneráveis a sugestões falsas, manipulações bem feitas e às antigas necessidades, hoje fora de moda, de contar histórias. (Acontece que a mente dá mais importância à elaboração de uma boa história do que à proximidade da verdade). Desnecessário dizer que essa pesquisa teve profundas implicações para muitas coisas, de testemunhas oculares a terapias faladas.

Depois de abrir com um inteligente experimento em massa - o Slate adulterou algumas fotos políticas e então demonstrou que uma porcentagem significativa dos entrevistados 'lembrava-se' de eventos fictícios - Saletan descreveu a ciência existente por trás dessas ilusões sentimentais. Em grande parte, ele se concentrou no importante e influente trabalho de Elizabeth Loftus: veja seu currículo.

Uma das coisas que torna tão interessante essa pesquisa sobre a falibilidade da memória é que agora podemos começar a explicar a falha cognitiva em nível celular. Em anos recentes, tem havido muitas pesquisas sobre a reconsolidação das lembranças, ou como nossa representação neural de nossas lembranças está constantemente sendo alterada. (Freud chamou esse processo de Nachtraglichkeit, ou 'retroatividade'. Estendo-me bastante sobre isso no capítulo sobre Proust do meu livro Proust Was A Neuroscientist.)

Tudo começou com um conjunto de experimentos extraordinários feitos em 2000 por Karim Nader, Glenn Shafe e Joseph LeDoux na NYU. Para encurtar uma longa história, os cientistas demonstraram que o ato de lembrar modifica nossas lembranças.

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Mas não foi isso que aconteceu. Quando Nader et al. bloquearam a lembrança da temível memória em ratos, o traço original da memória também desapareceu. Depois de uma só interrupção do processo de relembrança, o medo que tinham foi apagado. Os ratos ficaram amnésicos.

À primeira vista, essa observação experimental parece incongruente. Afinal, gostamos de pensar que nossas lembranças são impressões imutáveis, de algum modo destacadas do ato de lembrá-las. Mas não são. Uma lembrança só é real como da última vez que v. se lembrou dela. Quanto mais v. se lembra de alguma coisa, menos precisa se torna a lembrança. O significado mais amplo desse experimento é que a memória é um processo incessante, e não um repositório de informações inertes. Mostra-nos que a cada vez que nos lembramos de alguma coisa a estrutura neuronal da memória é delicadamente transformada, ou reconsolidada. E é por isso que é fácil convencer sujeitos ingênuos que eles conheceram o Pernalonga na Disneylândia.

Artigos de interesse:

Creating Childhood Memories
Elizabeth F. Loftus 1997
University of Washington
Summary. After decades of deliberate attempts to change people's memories for the details of events that they had observed in the past, researchers turned their attention to the task of planting entirely false childhood memories. One way to accomplish this is to enlist the help of family members to suggest to subjects that their relatives saw the event being suggested. Using this method, researchers have succeeded in convincing adult subjects that as children they had a variety of complex experiences, such as being lost in a shopping mall for an extended time, being hospitalized overnight, or spilling punch at a family wedding. Individuals with higher dissociative capacity and higher hypnotizability have been shown to be more susceptible to these suggestions. Possible mechanisms by which false memories are created are described.
Appl. Cognit. Psychol. 11: S75±S86 (1997)

Consequences of False Memories
Daniel M. Bernstein and Elizabeth F. Loftus 2009
Abstract. False memories, or memories for events that never occurred, have been documented in the real world and in the laboratory. In the real world, false memories involving trauma and abuse have resulted in real-life consequences. In the laboratory, researchers have just begun to study the consequences of false memories. We review this laboratory-based work and show how false memories for food-related experiences (e.g., becoming ill after eating egg salad) can lead to attitudinal and behavioral consequences (e.g., lowered self-reported preference for and decreased consumption of egg salad).

IMAGINATION CAN CREATE FALSE AUTOBIOGRAPHICAL MEMORIES
Giuliana Mazzoni and Amina Memon 2003
Abstract. Previous studies have shown that imagining an event can alter autobiographical beliefs. The current study examined whether it can also create false memories. One group of participants imagined a relatively frequent event and received
information about an event that never occurs. A second group imagined the nonoccurring event and received information about the frequent event. One week before and again 1 week immediately after the manipulation, participants rated the likelihood that they had experienced each of the two critical events and a series of noncritical events, using the Life Events Inventory. During the last phase, participants were also asked to describe any memories they had for the events. For both events, imagination increased the number of memories reported, as well as beliefs about experiencing the event. These results indicate that imagination can induce false autobiographical memories.