segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Alison Gopnik fala de Stanislas Dehaene


No New York Times de 3 de janeiro, Alison Gopnik escreve sobre o livro de Stanislas Dehaene, Reading in the Brain. É uma daquelas críticas/resenhas tão boas que ganham status de artigo e vida própria. Vou traduzir alguns trechos, e o original pode ser lido aqui.

"Neste exato momento, v. está movendo seus olhos sobre uma página branca cheia de marcas pretas. Ainda assim, v. sente que está devaneando no universo da The New York Times Book Review, alerta para o sedutor perfume de um novo e promissor romance e para a mordida amarga de um malévolo ataque crítico. A transformação dessas marcas arbitrárias em experiência vívida é um dos grandes mistérios da mente humana. É especialmente misterioso porque a leitura é uma invenção relativamente recente, datando de uns cinco ou dez mil anos. Nossos cérebros não evoluiram para ler.

Stanislas Dehaene, proeminente cientista cognitivo francês, ajudou a solucionar esse mistério. (...) Dehaene começa descrevendo o circuito neural notavelmente complicado que se devota a ir das marcas aos pensamentos. Ele então explica como a leitura se desenvolveu historicamente (das inscrições sumerianas e dos hieróglifos egípcios até os alfabetos gregos e romanos, e os caracteres chineses), como aprendemos a ler quando crianças e porque a dislexia torna a leitura tão difícil.

Cada vez que v. completa um teste de segurança da Web, de reconhecer palavras (CLM: também conhecido como 'captcha'), está prestando uma homenagem inconsciente à sofisticação e à sutileza do cérebro leitor. Os mais avançados programas de pirataria de invasão (spambots) não podem reconhecer as letras como podemos, e muito menos reconhecer o significado por trás delas. A ciência cognitiva mostrou que as experiências mais simples - conversar, ver, lembrar - são o resultado de computações diabolicamente complexas. O trabalho de Dehaene, juntamente com o de outros, coloca a leitura nessa lista.

Mas Dehaene também discute o que está para além da leitura, uma discussão sobre a própria natureza humana. Em "Reading in the Brain", ele adota a retórica do inatismo, um complexo de idéias desenvolvidas por Noam Chomsky há 50 anos e popularizada por psicólogos evolutivos como Steven Pinker. Ele argumenta que a leitura é limitada por estruturas cerebrais inatas, fixas, com pouca flexibilidade, apenas o suficiente para permitir o surgimento dessa habilidade sem precedentes.

Mas existem dois tipos diferentes de inatismo. Chomsky propôs que nascemos com estruturas neurais e cognitivas específicas, geneticamente determinadas, estruturas que estão muito além de alguns poucos mecanismos gerais de aprendizagem. Esse tipo de inatismo tornou-se o conhecimento padrão em ciência cognitiva. O cérebro não é uma página em branco. Entretanto, o outro e mais significativo tipo de inatismo trata não da história da mente, mas de seu futuro. Chomsky também argumentou que a estrutura inata estabelece limitações muito fortes sobre a mente humana. Os psicólogos evolutivos que defendem Chomsky dizem que estamos presos ao mesmo cérebro dos nossos ancestrais caçadores-coletores, com apenas algumas melhoras nas bordas. Muitos cientistas sociais rejeitam essa segunda afirmativa. Uma nova geração de cientistas cognitivos e de neurocientistas também começa a rejeitá-la. Nos últimos anos, os cientistas da computação desenvolveram novas técnicas de aprendizagem de máquina que permitem que computadores façam descobertas genuinamente novas, e os cientistas cognitivos começaram a descobrir que as mentes das crianças muito pequenas aprendem quase da mesma maneira. Ao mesmo tempo, os neurocientistas descobriram que o cérebro é muito mais plástico - mais influenciado pela experiência - do que pensávamos. O cérebero é altamente estruturado, mas também é extremamente flexível. Não é uma página em branco, mas também não está gravado em uma rocha.

Estamos testemunhando uma nova geração de cérebros plásticos de bebês reformatados pelo novo ambiente digital. Hippies da geração boomer ouviam Pink Floyd enquanto tentavam criar quadrinhos interativos em computadores. Seus filhos da geração Y cresceram tendo aqueles quadrinhos como segunda natureza, tão parte de sua experiência como a linguagem ou a palavra impressa. Há toda razão para acreditar que seus cérebros serão notavelmente diferentes, como o cérebro que lê é diferente do cérebro analfabeto.

Isso deveria inspirar tristeza, ou esperança? Sócrates temia que a leitura iria sabotar o diálogo interativo. E, é claro, ele tinha razão: a leitura é diferente da conversa. Os antigos meios de comunicação formados por fala, música e teatro foram radicalmente reformatados pela escrita, ainda que nunca tenham sido suplantados, o que talvez seja um conforto para aqueles de nós que ainda se emocionam com o cheiro de uma biblioteca.

Mas a dança, através do tempo, entre cérebros novos e antigos, pais e filhos, tradição e inovação, já é parte profunda da natureza humana, talvez a parte mais profunda. Tem um lado trágico. Orfeu observou sua querida morta esgueirar-se irrecuperavelmente para o passado. Nós, pais, temos que observar nossos filhos passarem inapelavelmente para um futuro que nunca alcançaremos. Mas, é certo, no final a história da leitura, da aprendizagem e da conexão cibernética religando interminavelmente o cérebro traz mais esperança do que tristeza".

Alison Gopnik é autora de “The Philosophical Baby: What Children’s Minds Tell Us About Truth, Love, and the Meaning of Life.”