segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Martin Amis - como pensa e escreve um bom escritor

(Acima, Martin Amis e seu amigo - e sou fã - o jornalista Christopher Hitchens)

"'Por que v. decidiu escrever um livro sobre o Holocausto?' Esse desafio, que ainda ouço algumas vezes, só pode ser respondido da seguinte maneira: 'Mas eu nunca decidi isso'. De modo similar, nunca decidi escrever um livro sobre sexualidade adolescente, ou a Inglaterra de Thatcher, ou sobre a Londres milenar ou, ainda, sobre o Gulag (que mesmo assim terminei de escrever em 2006). Com seu verbo irremediavelmente intempestivo e sua presunçosa conjunção, a pergunta revela uma compreensível ingenuidade sobre a maneira como são feitas as obras de ficção. Por que o romance (novel), como expressou Norman Mailer, é 'uma arte esotérica'.

Decidir escrever um livro sobre alguma coisa - em oposição a descobrir que v. está escrevendo um livro em torno de alguma coisa - soa como uma boa lembrança do bloqueio do escritor. Qualquer que seja sua extensão (vinheta, novella, épico), uma obra de ficção começa com uma alusão vaga - uma noção que também é uma sensação física. É difícil melhorar Nabokov, que a descreveu de modos diversos como 'um arrepio' (CL&M - um 'frio na espinha') e 'uma palpitação'. A palpitação pode vir de qualquer lugar, de uma notícia de jornal (muito comum), das sobras de um sonho, de uma citação mal lembrada. A fermentação crucial e ativadora está aqui: o arrepio deve se conectar com alguma coisa que já está presente no subconsciente.

Time's Arrow dependeu de uma coincidência, ou confluência. Em meados dos anos 1980, comecei a passar os verões em Cape Cod, Massachusetts, onde fiz amizade com o conhecido 'psico-historiador' Robert Jay Lifton. Bob era e é autor de uma sucessão de livros sobre os horrores políticos do século 20: livros sobre reforma ideológica na China, sobre Hiroshima, sobre o Vietnam. E em 1987 ele me deu uma cópia de seu último (e talvez mais elogiado) livro, The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide (Médicos nazistas: assassinato médico e a psicologia do genocídio).

Aqui, a missão historiográfica de Lifton é estabelecer o nazismo como uma ideologia essencialmente biomédica. Está lá em Mein Kampf (Minha Luta): 'Qualquer um que deseje curar esta época, que está internamente doente e apodrecida, deve primeiro reunir toda sua coragem para tornar claras as causas dessa doença'. O judeu era o agente de 'poluição racial' e de 'tuberculose racial': o 'eterno sanguessuga', o 'portador do germe', o 'verme de um corpo apodrecido'. De acordo com isso, o médico se tornou um 'soldado biológico'; aquele que cura tem que se tornar um assassino. Nos campos, todos os assassinatos não aleatórios eram supervisionados por médicos (os crematórios também eram). Como expressou um deles: 'Por respeito à vida humana, removo um apêndice gangrenado de um corpo doente. O judeu é o apêndice gangrenado do corpo da humanidade'.

Além disso, naquele ano eu também já estava pensando que poderia iniciar um conto sobre a vida vivida de trás para frente. Esta tênue proposta me atraía enquanto possibilidade poética - mas parecia fatalmente escorregadia.Não consegui encontrar qualquer finalidade para uma vida vivida dessa maneira. Que vida? Quando comecei The Nazi Doctors, vi-me pensando, de modo bastante desconcertante: esta vida. A vida de um médico nazista. 'Nascido' em New England, já um velho, 'moribundo' na Áustria, na década de 1920, como um bebê...

Depois de mais de um ano lendo lendo mais coisas, e de lutas diárias com um senso de profanação e de pânico (quem era eu para tocar nesse assunto sepulcral, e de um ponto de vista aparentemente 'jocoso'?), comecei a escrever. E imediatamente fiz uma descoberta revigorante: acontece que a flecha do tempo é a flecha da razão e da lógica, como se pode esperar; mas também é a flecha da moralidade. Passe o filme da vida de trás para frente, e (por exemplo), Hiroshima é criada em um só momento; a violência é benigna; a matança se torna cura, a cura matança; o hospital é uma câmara de torturas, o campo da morte uma fonte de vida, e o projeto nazista se torna o que Hitler disse que era: a maneira de tornar a Alemanha uma totalidade. O que ainda me atinge como se fosse uma medida dessa atrocidade terminal e diametricamente oposta: ele pedia que a flecha do tempo apontasse em outra direção.

Frequentemente nos perguntamos qual foi o pior: o bigodinho ou o bigodão, Hitler ou Stalin? Bem, 15 anos depois escrevi um livro sobre o holocausto russo, também (House of ­Meetings); e esse último, por acaso, foi o mais difícil de escrever, porque se concentra nas vítimas, não nos algozes. Mas isto são detalhes. Em nossa hierarquia do mal, instintivamente promovemos Hitler. E estamos certos.

O Gulag - e nem todos entendem bem isso - era em primeiro lugar um sistema estatal de escravagismo. A meta, nunca alcançada, era fazer dinheiro. Ainda assim, trata-se de um motivo que podemos reconhecer. a idéia alemã, com seus 'sonhos de onipotência e sadismo' (Lifton), era completamente desumana, ou 'anti-humana', na visão de Primo Levi, como um mundo no sentido anti-horário. Os nazistas estavam no nível intelectual de um jornalzinho de supermercado. Não deveria nos surpreender o fato de que havia um departamento governamental, em Berlim, montado para provar que os arianos não descendiam dos macacos; não, eles vinham do continente perdido de Atlântida, nos céus, onde estavam preservados em gelo desde o início dos tempos".
Martin Amis
The Guardian, Saturday 23 January 2010

Leia o original aqui. Ouça entrevista de Amis e Christopher Hitchens na BBC-Radio 4 falando sobre literatura, aqui (7 minutos).