domingo, 12 de julho de 2009

J. S. Bach - Morimur


O disco de hoje demanda explicações. Não para fruí-lo, mas para se entender sua anatomia e fisiologia, sua beleza arrasadora, aflitiva, trágica. Vamos voltar no tempo, quando a música sacra era escrita para ser tocada em igrejas, em eventos litúrgicos. Para a maior glória de Deus. Johann Sebastian, ao voltar para casa de uma viagem de trabalho, foi supreendido com a notícia de que sua esposa Maria Barbara, de 36 anos de idade, tinha morrido há poucos dias e já tinha sido sepultada. Parentes haviam acolhido os filhos do casal. Johann Sebastian ficou dilacerado. Ainda de luto, compõe a Partita No. 2 em Re Menor, BWV 1004, considerada o epitáfio musical de Maria Barbara, onde reina absoluta a Ciaccona através da qual ele transmite sua perplexidade, e através da qual procura conversar com o Deus de sua igreja. Não está resignado, mas conhece a fórmula trinitariana que rege a existência dos cristãos: Ex Deo nascimur/In Christo morimur/Per Spiritum Sanctum reviviscimus (Nascemos de Deus, Morremos em Cristo, Renascemos através do Espírito Santo). Seus numerosos corais, motetos, cantatas e missas repetem a fórmula e suas variações, procurando consolo para os aflitos e glorificando as transcendências celestes.

Em 1994, a musicóloga e violinista alemã Helga Thoene publicou um trabalho onde apontava a existência de códigos numerológicos referentes a corais anteriores na estrutura da partita em Re Menor, e reconstruiu como pôde (ou quis) essa simbiose. Os detalhes dessa mineração podem ser lidos no artigo Gravest Bach Is Suddenly A Best Seller, de James R. Oestreich (NY Times de 02.12.2001, aqui). Gravado pela ECM em 2001, este CD surge porque, “Intrigado com as implicações do texto (de Thoene), Christoph Poppen discutiu com o produtor Manfred Eicher a possibilidade de um disco que tornaria audíveis os ‘corais ocultos’, e foi proposta uma colaboração com o Hilliard Ensemble”. E prossegue esse artigo, publicado pela ECM: “A dramaturgia desse disco chega ao clímax com a reveladora versão da Ciaccona para violino e vozes, quando os cantores do Hilliard entoam os versos em paralelo com o instrumento solista”.

Entre detratores (muitos) e admiradores (muitíssimos) desse CD, as palavras cheias de sanidade de Don G. Evans (aqui) são um alívio para nossas orelhas cansadas de abobrinhas esotéricas. Entre outras coisas, diz Evans: “Mas não é novidade descobrir que Bach usou melodias de corais em suas obras, quase sempre de modo sutil. Eram a mobília de sua vida diária, e seria surpreendente se esse não fosse o caso. Quanto à gematria, e àquela coisa da Partita ser sobre a morte de sua primeira mulher, seria preciso bem mais do que o lero-lero místico das notas desse disco para me convencer. O que mais nos dará a Profa. Thoene? Se tivermos paciência, estou certo de que podem ser encontrados os nomes e provavelmente as grandes melodias de todos os grandes compositores ocultos e codificados nas notas musicais do Cravo Bem Temperado. Isto nos diz muito sobre a engenhosidade humana e nossa sede por padrões, mas muito pouco sobre Bach”.

No entanto, para mim a palavra final é de Jan Hanford, do site www.jsbach.org: “Ainda que a teoria soe mal costurada e tenha sido amplamente criticada, a música é adorável. Esta gravação de Poppen e do Hilliard alterna o violino solo com os corais e termina com uma bela performance da Ciaccona ao violino acompanhada pelas vozes que cantam as melodias dos corais. Não só essa teoria é interessante, como a música é assombrosa e bela.” (aqui)

Neste endereço há uma descrição muito completa (em italiano) da obra e de todas as suas partes, para aqueles que não puderem ter em mãos o livreto de 80 páginas que acompanha o CD original.

O endereço para download vem do site El Cronopio Coral, que tem muitos outros CDs interessantes, entre eles Henry Purcell, Canções de Tabernas e de Capelas, com o Deller Consort, e o primeiro dos Swingle Swingers, Jazz Sebastian Bach.
http://www.megaupload.com/?d=96EZV8X3


Uma nota: fico devendo encontrar e postar o CD de uma outra versão dessa alquimia entre a Partita de Bach e as pesquisas de Thoene, De Occulta Philosophia, com Jose Miguel Moreno (alaúde), Emma Kirby (soprano) e Carlos Mena (contratenor), lançado em 1998 pela Glossa e elogiadíssimo em todos os artigos que li sobre ele.