sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Cérebro e Mente

O problema da consolidação epistemológica desses dois constructos (ou configurações, como nos permite o OED) vem perturbando a humanidade há séculos. Para uma visão breve e tão boa como qualquer outra do que Aristóteles achava, veja Was Aristotle really a Functionalist?, de Christopher D. Green. Apenas depois de Descartes é que a disparidade entre res cogitans (a mente) e res extensa (o cérebro) ficou mais pregnante, mais 'visível' filosoficamente.

Uma sinopse histórica da questão pode ser lida na Wikipedia para se obter uma visão geral do assunto. Se v. estiver à toa e de bom humor, leia também na Wiki sobre o 'problema quântico mente-corpo' (Aqui. Uma questão irresolvida sendo examinada com instrumentos de uma disciplina que ninguém entende. Como disse o grande físico e Prêmio Nobel Richard Feynman, "I think I can safely say that nobody understands Quantum Mechanics").

Neste mês de dezembro, dois autores trataram desse conhecido problema no New York Times (links abaixo). Tyler Burge (Distinguished Professor of Philosophy at University of California, Los Angeles - U.C.L.A) começa reclamando: "As neuroabobrinhas despertam interesse em ciência, mas toldam a visão de como a ciência funciona. Indivíduos vêem, conhecem e querem fazer amor. Cérebros não. Essas coisas são psicológicas - e não, de qualquer ponto de vista evidente - neurais. A atividade cerebral é necessária para os fenômenos psicológicos, mas sua relação com eles é complexa". A bibliografia de seu artigo (yes; hoje em dia, artigo de divulgação científica tem bibliografia) nos traz The Seductive Allure of Neuroscience Explanations, de Deena Skolnick Weisberg, Frank C. Keil, Joshua Goodstein, Elizabeth Rawson e Jeremy R. Gray, em cujo abstract pode-se ler: "Explicações de fenômenos psicológicos parecem gerar um interesse público maior quando contêm informações neurocientíficas. Mesmo informações irrelevantes de neurociência em uma explicação de um fenômeno psicológico podem interferir com a capacidade das pessoas de avaliar criticamente a lógica básica dessa explicação".

O artigo de Andy Clark (professor of logic and metaphysics in the School of Philosophy, Psychology, and Language Sciences at Edinburgh University, Scotland) - sem bibliografia - vai por outra estrada: os dispositivos gerados pela cultura e pela tecnologia em todos os níveis e searas desatrelam nossas mentes de nossos cérebros, como que tornando secundária a grande questão ancestral que estamos abordando. Por exemplo, diz ele:

"Esse tipo de idéia está agora sendo explorado por uma onda de cientistas e filósofos que trabalham em áreas conhecidas como 'cognição materializada' e 'mente extendida'. Unindo esses campos está a idéia de que a evolução e a aprendizagem não dão pelota para quais recursos serão usados para se resolver um problema. Não há mais razões, da perspectiva da razão ou da aprendizagem, para favorecer uma estratégia cognitiva unicamente cerebral do que para favorecer o uso de engenhosas (mas bagunçadas, complexas e de difícil compreensão) combinações de cérebro, corpo e mundo. Os cérebros desempenham o papel principal, é claro. Eles são uma área de grande plasticidade e poder de processamento, e serão a chave para quase toda e qualquer forma de sucesso cognitivo. Mas pense nos diversos recursos cujos piques de atividade relacionada a tarefas ocorrem em outros locais, não apenas nos movimentos físicos de nossas mãos e braços enquanto estamos raciocinando, ou nos músculos de uma dançarina ou de uma estrela dos esportes, mas até mesmo exteriormente ao nosso corpo biológico - nos iPhones, Blackberrys, laptops e agendas que transformam e ampliam o alcance o alcance do simples processamento biológico de tantas maneiras. ... (Eles) podem ser vistos, como eu e outros já argumentamos, como elementos bio-externos de um processo cognitivo extendido: um processo que hoje atravessa as fronteiras convencionais da pele e do crânio".

A Real Science of Mind
By Tyler Burge

December 19, 2010, 5:18 pm
http://opinionator.blogs.nytimes.com/2010/12/19/a-real-science-of-mind/?emc=eta1

Out of Our Brains
By Andy Clark

December 12, 2010, 3:47 pm
http://opinionator.blogs.nytimes.com/2010/12/12/out-of-our-brains/

Para sistematizar, aqui está uma apresentação das diversas abordagens existentes:

Em princípio, apenas algumas posições principais podem ser distinguidas no debate mente-cérebro:
i) O cérebro controla/produz a mente (materialismo, fisicalismo, epifenomenalismo, superveniência; por exemplo, Churchland, 1981, 1984; Kim, 2002). Esse conceito tem crescente influência atualmente, sendo o preferido pela maioria dos neurocientistas.
ii) A mente controla/influencia o cérebro (mentalismo, idealismo). Esta posição, bastante tradicional, é apoiada pela experiência comum de que posso mover minha mão se esta for minha intenção. Os idealistas filosóficos tradicionais acham que o mundo, e também o cérebro, são resultado da ação de uma entidade mental distinta. É difícil combinar essa posição com observações da ciência natural.
iii) A mente e o cérebro interagem e influenciam-se mutuamente (dualismo; por exemplo, Popper and Eccles, 1977; Libet, 2005). Esta posição é bastante comum, tendo dificuldades de explicar a causação descendente (downward causation) (Walter and Heckmann, 2003). Em psicologia e psiquiatria científicas, o dualismo interativo teve ampla aceitação; atualmente, apenas o dualismo de aspecto ou o dualismo de propriedade são propostos com base na diferença entre os métodos de estudo do cérebro.
iv) A mente é o cérebro e o cérebro é a mente (conceito de identidade, materialismo, monismo; Churchland, 1981; Davidson, 1970). Devido a razões lógicas, esse conceito foi o preferido no debate profissional desde as atividades do Círculo de Viena (Stadler, 2001). Os termos psicológicos devem ser eliminados e substituidos por termos neurológicos (Carnap, 1928, 1932). Entretanto, essa posição também apresenta dificuldades lógicas.
v) O cérebro é o órgão da pessoa, do sujeito (fenomenologia; McGinn, 1989). No conceito tradicional da fenomenologia, o sujeito que experimenta é o quadro de referência, sendo o cérebro apenas um órgão do todo.
Philosophical Aspects of Neuropsychiatry, por Felix Tretter, aqui:

Systems Biology in Psychiatric Research: From High-Throughput Data to Mathematical Modeling
Edited by F. Tretter, P.J. Gebicke-Haerter, E.R. Mendoza, and G. Winterer

Wiley 2010 378 pages PDF 4.5MB
http://www.megaupload.com/?d=ZTRQULX0 ou
http://depositfiles.com/files/s5u1gbsgm
(Tive alguma dificuldade com o Megaupload e acabei conseguindo fazer o download com o Depositfiles)

Lembrei-me de um trecho do livro Entre o Tempo e a Eternidade, de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, que pode nos orientar parcialmente nesse ponto - p. 146):

"Havíamos dito na introdução deste livro: nosso trabalho é ao mesmo tempo de abertura e de continuidade. Abertura para uma nova coerência da física, continuidade que nos permite compreender os êxitos das teorias passadas, mas também sua contingência. Essa contingência situa-nos na história humana - a história que levou a privilegiar a estabilidade previsível dos movimentos planetários em detrimento do caráter caótico do lance de dados, por exemplo -, mas também na história do Universo. Evidentemente, em nenhum dos dois casos contingência quer dizer arbitrariedade".

Nós, que vivemos quotidianamente a contingência das teorias que pretendem solucionar a questão mente-cérebro (ou mind-body) sem chegar a um resultado satisfatório, temos que aguardar pacientemente o desenrolar da história humana no devir do Universo.


Veja também os abstracts de alguns artigos que tratam do assunto e suas diversas correlações.

Mapear a geografia cortical da cognição humana com técnicas de neuroimagem funcional como PET ou fMRI é uma empreitada emocionante mas perigosa. É emocionante porque... É perigosa porque, entretanto, o mapeamento cerebral da cognição humana tem poucos fatos para guiar a formação de hipóteses ou a interpretação de ativações. Esta escassez de conhecimentos pode ser comparada com o elegante mapeamento funcional dos estágios iniciais da visão humana.
(The role of left prefrontal cortex in language and memory - John D. E. Gabrieli, Russell A. Poldrack, and John E. Desmond).

Tentei fazer uma revisão abrangente dos achados psicológicos e neurocientíficos relevantes para o problema da mente com relação ao cérebro e ao comportamento. As seguintes conclusões são sugeridas: (a) as discussões correntes sobre a mente quase sempre fazem suposições implícitas derivadas das teorias de Aristóteles e Descartes, enquanto ignoram evidências científicas mais recentes; (b) estudos psicológicos indicam que os humanos estão diretamente cônscios do mundo externo e de seus corpos, mas de pouca coisa além disso. A suposição cartesiana de que temos acesso direto aos nossos pensamentos parece ser um erro; (c) não há critérios objetivos claros para se avaliar a existência de uma consciência subjetiva nos outros. Este problema é particularmente agudo no caso de animais não humanos e de humanos com função cerebral danificada; (d) a teoria de que as subdivisões convencionais da mente, como emoção ou cognição, refletem subdivisões naturais da função cerebral é em sua maior parte falsa; e (e) o principal desafio científico enfrentado pela neurociência não é explicar a mente, mas obter compreensão sobre como a atividade neural gera comportamento.
(Brain, Behavior, and Mind: What do we Know and What can we Know? - C. H. Vanderwolf)

Novas técnicas de imagem em neurociência cognitiva produziram um dilúvio de informações que correlacionam fenômenos cognitivos e neurais. Ainda assim, nossa compreensão sobre a interrelação entre cérebro e mente continua dificultada pela falta de uma linguagem teórica para expressar as funções cognitivas em termos neurais. Nós propomos uma abordagem para se entender as leis operacionais da cognição com base em princípios de dinâmica de coordenação que se derivam de um modelo teórico simples e experimentalmente verificado. Quando aplicados às propriedades dinâmicas das áreas corticais e sua coordenação, esses princípios sustentam um mecanismo de circunscrição adaptativa de padrão inter-áreas (adaptive inter-area pattern constraint) que postulamos estar na base das operações cognitivas em geral.
(Cortical coordination dynamics and cognition - Steven L. Bressler and J.A. Scott Kelso)

Desde o último ancestral comum compartilhado por humanos, chimpanzés e bonobos, a linhagem que leva ao Homo sapiens passou por substancial modificação quanto a tamanho e organização do cérebro. Como resultado, os humanos modernos apresentam notáveis diferenças no domínio da cognição e da expressão linguística com relação aos macacos existentes. Neste artigo nós revisamos as modificações evolutivas que ocorreram na descendência do Homo sapiens através da reconstrução dos traços neurais e cognitivos que teriam caracterizado o último ancestral comum e da comparação destes com a condição humana moderna. Pode-se reconfigurar o último ancestral comum como tendo tido um cérebro de aproximadamente 300-400 g que apresentava diversas especializações filogenéticas singulares de desenvolvimento, organização anatômica e função bioquímica. Estes substratos neuroanatômicos contribuiram para o incremento da flexibilidade comportamental e da cognição social. Tendo esta história evolutiva como precursora, a mente humana moderna pode ser concebida como um mosaico de traços herdados a partir de uma ancestralidade comum com nossos parentes próximos, juntamente com a adição de especializações evolutivas em domínios particulares. Estas adaptações cognitivas e linguísticas humano-específicas modernas parecem estar correlacionadas com um aumento do neocórtex e de estruturas relacionadas. Acompanhando essa expansão neocortical geral, certas áreas corticais unimodais e multimodais de ordem superior cresceram desmedidamente com relação a áreas corticais primárias. Também foram identificadas modificações anatômicas e moleculares que poderiam estar relacionadas à maior demanda metabólica e plasticidade sináptica incrementada dos cérebros humanos modernos. Finalmente, a trajetória de crescimento cerebral singular dos humanos modernos fez uma importante contribuição para as habilidades cognitivas e linguísticas de nossa espécie.
(A natural history of the human mind: tracing evolutionary changes in brain and cognition - Chet C. Sherwood, Francys Subiaul & Tadeusz W. Zawidzki)

Este estudo descreve uma nova teoria da consciência baseada em trabalhos anteriores de C.D. Broad, H.H. Price, Andrei Linde e outros. Esta hipótese afirma que o Universo consiste de três entidades fundamentais - espaço-tempo, matéria e consciência, cada uma delas com seus próprios graus de liberdade. O estudo presta particular atenção a três áreas que atingem esta teoria: (1) a demonstração pela neurociência e pela psicofísica de que não percebemos o mundo como ele realmente é, mas sim como o cérebro o computa da maneira como mais provavelmente ele deve ser; (2) a necessidade de traçar uma linha entre o espaço-tempo fenomênico e o espaço-tempo físico. Teorias físicas recentes que sugerem que o Universo tem mais do que três dimensões espaciais são relevantes aqui; (3) o papel da consciência no Universo em bloco descrito pela Relatividade Especial. A integração desses tópicos sugere uma nova teoria da natureza da consciência.
(Space, Time and Consciousness - John Smythies)

Abstract. Nos últimos anos, cientistas e especialistas de diversas disciplinas vêm fazendo esforços conjugados para responder uma antiga pergunta, a saber: Como exatamente os processos físicos do cérebro causam a consciência? O que se deve distinguir sobre a maneira como os cientistas e especialistas modernos estão abordando essa questão é que eles a tratam como um problema científico, mas do que metafísico. Esta transição reflete o clima de expectativa na ciência cognitiva moderna quanto à iminência de uma solução empírica para um problema filosófico que anteriormente era considerado insolúvel. Ainda assim, uma recente revisão acadêmica de publicações dos principais pesquisadores da área como Francis Crick, Daniel Dennett, Gerald Edelman, Roger Penrose e Israel Rosenfield concluiu que nenhum deles conseguiu fornecer uma resposta satisfatória para a questão (Searle 1995a). Este estudo (Solms') faz uma contribuição psicanalítica para esse esforço interdisciplinar e dá uma resposta alternativa para a questão com base na conceitualização de Freud sobre o problema da consciência. O estudo toma um exemplo concreto da revisão de Searle, faz sua reanálise com base no quadro de referência da metapsicologia de Freud e demonstra que esse quadro fornece uma solução radical para o problema. As implicações do trabalho de Freud não tinham sido reconhecidas até aqui, e portanto não tinham recebido a atenção merecida.
(What Is Consciousness? - Mark Solms)