quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Afinal, o que é doença mental?

Estou com Tamil:

There is a virtual babel out there. Little bits of entropy adding to the heat death of the universe, a gradual chugging down of the cosmic engines. And should I add more noise to this? (Tamil Nadu-Chennai)

Mas não estou gerando ruído - estou afirmando meu direito de opinar, já que sou parte da história da humanidade e do Universo. Todos somos. História é coisa séria porque nos materializa em um ponto do percurso que tem sua dinâmica própria, boa parte da qual criada por nós mesmos. Para compreender essa dinâmica (como sugeriu Alceu Amoroso Lima, montado sobre os ombros de gigantes que nos antecederam), a inteligência tem que inflingir um corte no devir e logo em seguida pagar o preço por estilhaçar a totalidade da vida. Esse preço é a particularização ontológica do nosso mundo em saberes institucionalizados.

No terreno da saúde mental, onde visceja a doença mental, o porta-voz dessa particularização é a psiquiatria com sua bíblia a tiracolo, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais - DSM (The Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, atualmente com sua versão 5 sendo parida nos cérebros desses facultativos). Como se pode ler no artigo de Gary Greenberg (gatilho dessa postagem - ver mais abaixo):

"Psiquiatras no topo de suas especialidades, clínicos em hospitais proeminentes e até alguns autores da nova edição expressaram profundas reservas quanto a ela. Os dissidentes reclamam que o processo de revisão está desordenado e que os resultados preliminares, tornados públicos pela primeira vez em fevereiro de 2010 (CLM - ver nossa postagem Classificando a Loucura, de 14 de junho de 2010) estão cheios de pesadelos potenciais clínicos e de relações públicas. Ainda que a maior parte dos dissidentes tenham receio de tornar públicas suas preocupações - especialmente por causa de um acordo surpreendentemente restritivo de confidencialidade que todos os implicados foram obrigados a assinar - eles estão ficando cada vez mais inquietos, e alguns estão começando a concordar com Frances (CLM - Allen Frances, editor principal do DSM-IV e hoje um dos principais críticos da coisa toda - veja no artigo de Greenberg) de que a pressão pública pode ser a única maneira de descarrilar o trem que, ele teme, está levando a psiquiatra despenhadeiro abaixo".

Uma imagem forte? Certamente. Mas "Um castelo erigido sobre areias epistemológicas" é como um dos comentaristas do artigaço Inside the Battle to Define Mental Illness, de Gary Greenberg, na revista eletrônica Wired de 27 de dezembro de 2010, define o conjunto diagnóstico do DSM 4 et caterva. Outro comentarista descreve os psiquiatras que acompanham cegamente os ditames do DSM: "Eles são agentes do cumprimento e defesa da normalidade e do controle social, assim como doutrinadores impiedosos e incorrigíveis que nos impingem seus rótulos e remédios abjetos e desumanizadores".

Greenberg já tinha escrito no artigo: "Naquele mês de junho (2009), Frances publicou um panfleto (CLM - broadside, um artigo crítico de apenas uma página) no website do Psychiatric Times, um noticiário independente da indústria. Entre os numerosos alarmes que essa publicação fez soar, Frances preveniu que o novo DSM, com sua ênfase na intervenção precoce, iria causar 'uma medicalização imperial por atacado da normalidade' e 'uma época de bonança para a indústria farmacêutica', pelas quais os pacientes pagariam o alto preço de efeitos adversos, dólares e estigma'".

"A normalidade é uma condição precária", nos diz Herbert Marcuse em "Crítica do Revisionismo Freudiano", último capítulo de Eros and Civilization. Excluindo os cataclismas naturais, tudo o que devasta o ser humano em qualquer época foi ele mesmo que elaborou. O desafio do DSM é como lidar com essa precariedade sem se transformar em mais uma nêmesis para a sanidade mental dos seres humanos. Diz outro comentarista do artigo de Greenberg:

"É importante reconhecer que o problema não está tanto no Conteúdo do DSM. O problema está no Poder por trás dele. Essencialmente, o DSM é um documento quasi-legal, criado em particular por algumas centenas de psiquiatras ricos e poderosos que gostam de bater boca, e que literalmente votam no que seja um comportamento e um pensamento 'apropriados '".

Eu discordo: o problema está tanto no conteúdo quanto no poder do DSM. Mas vamos ficando por aqui, com um dos últimos parágrafos do artigo de Greenberg:

"O que a batalha acerca do DSM-5 deve deixar claro para todos - tanto profissionais como leigos - é que o diagnóstico psiquiátrico provavelmente sempre vai estar carregado de incerteza, que os rótulos que os médicos nos dão para nossos sofrimentos serão sempre tanto o produto de negociações à volta de uma mesa de conferências como de investigações em um laboratório científico. Regier e Scully têm a maior boa vontade em reconhecer isso. Como diz Scully: 'O DSM sempre será provisório; é o melhor que podemos fazer'. Regier, por seu lado, diz: 'O DSM não é bíblico. Não está inscrito em pedra'. O problema real é que seguradoras, júris e (é...) pacientes não estão preparados para aceitar esse fato. Nem os psiquiatras estão preparados para perder a autoridade que assumem ao parecerem possuir certeza científica sobre as doenças que tratam. Afinal, o DSM não salvou a especialidade, e tornou-se um best-seller no processo, afirmando ser apenas provisório".

Neste excelente artigo de Greenberg, é claro, são elogiados os psiquiatras e terapeutas que têm uma visão humanista/humanitária dos problemas de seus pacientes, mas isso nem precisa ser dito: em toda atividade há bons e maus profissionais.