sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Freios moleculares afetam a plasticidade cerebral


Esse artigo, além de ser muito interessante, mostra que um bom science writer como Bruce Goldman pode "traduzir" para os leigos (com a ajuda de uma entrevista) um artigo altamente esotérico (Classical MHC I Molecules Regulate Retinogeniculate Refinement and Limit Ocular Dominance Plasticity, de Akash Datwani, Michael J. McConnell, Patrick O. Kanold, Kristina D. Micheva, Brad Busse, Mehrdad Shamloo, Stephen J. Smith and Carla J. Shatz) e aí sim, entende-se quase tudo.

A chefa da coisa toda, Carla Shatz, tem tanta confiança no que está fazendo que deu entrada no registro de patentes americano, juntamente com Joshua Syken, de sua invenção Compositions and Methods For Enhancing Neuronal Plasticity and Regeneration, onde fica previsto que o método pode vir a ser eficaz em autismo, dislexia, paralisia cerebral, lesão cerebral traumática, derrame (stroke), doença de Alzheimer e distúrbios de memória. O item Descrição Detalhada da Invenção (0075-0079), por sinal, é um artigo por si só, e claro até para leigos. Se v. consultar esse texto e tiver curiosidade de saber o que é o onipresente PirB, trata-se do Paired immunoglobulin-like receptor-B (subitem 0079, com erro ortográfico e tudo), uma proteína do sistema imune. Repare que esse pedido de patente é uma verdadeira aula sobre neurobiologia e neuroquímica, com incursões em neurogenética.

Uma investigação no Google chegou ao site de notícias do Harvard Medical School Office of Public Affairs, onde ficamos sabendo em um news release de 17 de agosto de 2006 que o estudo inicial era sobre o sistema imune, e que o toque de gênio foi essa suposição de Shatz e Syken: "Há muitos anos, Shatz e colegas fizeram a surpreendente descoberta de que os genes MHC Class I são ligados nos neurônios através da própria atividade neuronal, e de fato são necessários na plasticidade sináptica normal. No sistema imune, as proteínas MHC Class I ensinal às células imunes quais são as células que devem atacar. Fazem isso interagindo com um grande número de receptores encontrados na superfície das células imunes. Suke, Shatz e colegas imaginaram se tais receptores também poderiam se expressar em neurônios e estar envolvidos na plasticidade sináptica mediada por MHC Class I". Pensando bem, esse artiguinho de Harvard é tão esclarecedor (em geral) quanto o original de Shatz et al. na Neuron...

Duas moléculas que afetam a plasticidade cerebral
November 25, 2009 por BRUCE GOLDMAN
(PhysOrg.com) -- Você não ia querer um carro sem freios. Acontece que o cérebro em desenvolvimento também precisa deles.

Pesquisadores da Stanford University School of Medicine identificaram um conjunto de freios moleculares que establizam o circuito cerebral em desenvolvimento. Além disso, a remoção experimental desses freios em ratos melhorou o desempenho dos animais em um teste de aprendizagem visual, sugerindo uma via de longo prazo para uma aplicação terapêutica.
Em um estudo a ser publicado em 25 de novembro na revista Neuron, Carla Shatz, Professor de neurobiologia e de biologia, juntamente com seus colegas, ligaram dois membros de uma grande família de proteínas muito importantes para a função imune (conhecidas coletivamente como as moléculas HLA nos humanos e moléculas MHCIem ratos) ao desenvolvimento cerebral. Até recentemente, pensava-se que essas moléculas imune-associadas não tinham qualquer papel no cérebro sadio. (Nota do CL&M - MHCI é Major Histocompatability Complex Class I molecules)
Em estudos anteriores, Shatz e seus colegas de pesquisa demonstraram que as moléculas MHC são encontradas na superfície dos neurônios cerebrais, e que elas moderam a "plasticidade sináptica": a facilidade com que as sinapses - os mais de 100 trilhões de pontos de contato entre os neurônios, e que determinam o circuito cerebral - são fortalecidas, enfraquecidas, criadas ou destruídas em resposta à experiência. Em um estudo recente, o grupo de Shatz ligou dois membros específicos da família MHC I, chamados K e D, à capacidade dos circuitos de uma região do cérebro responsável pelo aprendizado motor de se refinarem através de uma experiência de aprendizagem.

Desta vez, os cientistas se concentraram no processamento cerebral da visão. "Já descobrimos que K e D foram localizadas em regiões cerebrais que sabíamos serem importantes: o córtex visual e uma estação de transmissão do cérebro que envia seu input para o córtex visual", diz Shatz.

Um bom exemplo do "use-o ou perca-o", enquanto maneira pela qual a sintonia do circuito dependente de experiência dá forma ao cérebro, é a capacidade de um dos olhos para apropriar-se de circuitos cerebrais que normalmente seriam usados pelo outro olho.
"Normalmente, seus dois olhos compartilham circuitos cerebrais devotados à visão de modo 50/50", disse Shatz. "Mas quando as crianças nascem com catarata congênita, ou perdem um olho - ou em modelos animais, quando um dos olhos é bloqueado - de modo que a máquina cerebral de processamento de informações visuais já não esteja sendo usada de modo equlibrado pelos dois olhos, o outro olho não fica só ali esperando. Ele se apropria do maquinário reservado normalmente para o input do outro olho".

Para cartografar os papéis de K e D no desenvolvimento visual, o grupo de Shatz estudou ratos geneticamente modificados para não possuírem estas duas moléculas. Descobriram que a sintonia do circuito de desenvolvimento era anormal, disse ela. "O input neural dos olhos era o mesmo no nível geral - os principais tratos neurais ainda iam do olho para o primeiro sistema visual de transmissão, e daí para o córtex visual. Mas as conexões detalhadas dentro de cada estrutura haviam sido alteradas. A padronização adulta não se desenvolvia normamente".
Nesses ratos com deficiência de K e D, a capacidade de um olho mais utilizado para dominar o circuito de processamento das informações visuais é anormal, e de maneira surpreendente, diz Shatz. "Há muito domínio", disse ela. "Se um dos olhos pára de funcionar, o outro olho assume mais do que a parte que lhe cabe do maquinário cortical devotado ao território do processamento cerebral de informações visuais".

Em um teste de desempenho visual, a equipe de Shatz demonstrou que os ratos deficientes em K e D podiam ver melhor através do olho remanescente do que os ratos comuns que tinham sido criados de modo semelhante com um olho bloqueado. Isto sugere que existe algum tipo de freio molecular sobre a plasticidade do cérebro, e que essas moléculas estão envolvidas no sistema de frenagem. "Tirando-se o freio, melhora-se o desempenho", disse ela.

Utilizando um novo método para localizar moléculas em blocos tridimensionais de tecido (trabalho pioneiro do coautor Stephen Smith, PhD, professor de fisiologia celular e molecular e membro do Stanford Cancer Center), a equipe de Shatz conseguiu demonstrar que K e D se localizam nas sinapses. "Nós os colocamos na cena do crime, no exato local onde a mudança de circuito acontece", disse ela. "Achamos que, no cérebro, eles são partes de uma via de um sistema comum de frenagem".

Mas o que está acontecendo no cérebro para que haja necessidade de um freio? Sem aceleradores e freios, qualquer sistema dinâmico - como o cérebro, onde as conexões se modificam dramaticamente em reação à sua utilização - se tornaria instável, disse Shatz. "Alguns de nós acham que a epilepsia, por exemplo, poderia ser uma consequência desse processo não ser cuidadosamente controlado e regulado, e acontecer com tanta facilidade".

O fato de que as moléculas MHC se expressam nos neurônios tem implicações muito grandes, porque a inflamação age através do sistema imune. A inflamação ativa a liberação de moléculas chamadas citoquinas (grafadas em português como 'citocinas' por muitos autores), que modificam os níveis de MHC I nas células por todo o corpo, disse Shatz. "Se esse processo também modificar os níveis de MCH I nas células do cérebro, será que isso alteraria o processo de sintonização de circuito o suficiente para fazer alguma diferença com relação ao comportamento?"

Também há implicações terapêuticas, observou Shatz. "Talvez em crianças com distúrbios de aprendizagem o freio tenha sido aplicado com força demais - ou pode significar que depois de uma lesão no cérebro adulto, tirar o freio ou afrouxá-lo um pouco poderia permitir que o cérebro fosse retreinado com mais facilidade".
Fonte: Stanford University Medical Center
Leia o original: http://www.physorg.com/news178374711.html