sábado, 7 de novembro de 2009

Acendendo a chama da consciência

Em março de 2009, o blog Neurophilosophy publicou este interessantíssimo artigo. Não fiquei sabendo dele na época, mas como disse Joaquim Nabuco do Nozor: "libertas cué sera tamen", isto é, "se é tarde, me perdoa", na genial tradução de Lyra & Boscoli.

Igniting the flame of consciousness
Category: NeurosciencePosted on: March 17, 2009 4:40 AM

Todos sabemos o que significa estar consciente. Você, claro, está consciente nesse momento. Se não estivesse, seria incapaz de ler esse artigo. E enquanto lê, estará consciente das palavras na tela de seu computador; das sensações táteis que se originam do mouse que v. está segurando e da cadeira em que está sentado; e possivelmente de algum barulho ao fundo, mesmo que não esteja prestando atenção explicitamente.

Mesmo assim, o termo consciência ainda não tem definição adequada, e a questão de como ela é gerada no cérebro é um dos maiores desafios da moderna neurociência. Portanto, os pesquisadores que investigam esse misterioso fenômeno utilizam uma definição de trabalho, e se concentram nos conteúdos subjetivos de nossa percepção consciente (conscious awareness). Quase sempre isso é feito indiretamente, utilizando neuroimagem funcional para investigar, por exemplo, os correlatos neurais da percepção visual.

Agora, um grupo de pesquisadores e clínicos franceses comunicam que mediram os correlatos neurais da percepção consciente de maneira direta, e com resolução espacial e temporal superior à de estudos anteriores, utilizando eletrodos implantados no cérebro de pacientes que passavam por cirurgia para epilepsia. Seus achados, que acabam de ser publicados no journal de livre acesso PLoS Biology, dão sustentação ao modelo global de espaço de trabalho da consciência.

A definição de trabalho da consciência se baseia na suposição de que todas as representações mentais se derivam da atividade cerebral e, portanto, que todos os estados mentais estão associados a um estado neural. Assim, os pesquisadores que investigavam a consciência usaram de modo típico a neuroimagem funcional para comparar a atividade cerebral associada a estímulos visuais que entram na percepção consciente com a atividade associada àqueles que não entram. Mas a neuroimagem se baseia em mudanças no fluxo sanguíneo no cérebro, e assim não é uma atividade direta de medida. Além disso, um recente estudo demonstrou que a relação entre o fluxo sanguíneo cerebral e a atividade neural não é clara.

Raphael Gaillard, da Cognitive Neuroimaging Unit do INSERM, e seus colegas, tiveram uma oportunidade única para registrar os correlatos neurais da percepção consciente diretamente, usando eletrodos implantados no cérebro de pacientes epiléticos que passariam por uma neurocirurgia. Nesses pacientes, as drogas anticonvulsivas são ineficazes para reduzir a severidade das convulsões, e assim a remoção cirúrgica do tecido anormal é a única opção remanescente. Mas o tecido deve primeiro ser localizado, e isto ainda é feito com o uso de uma técnica desenvolvida por Wilder Penfield na década de 1930, na qual o cirurgião estimula eletricamente o córtex cerebral do paciente. Como o paciente está acordado e plenamente consciente, pode comunicar o que está sentindo em resposta à estimulação. Daí, o cirurugião pode identificar o tecido a partir do qual se originam as convulsões e estabelecer sua relação com as áreas indispensáveis que devem ser evitadas durante o procedimento.

Os experimentos foram feitos durante a avaliação de dez pacientes epiléticos, que concordaram em participar do estudo. Já na mesa de operação, foi-lhes mostrada uma tela de computador onde eram apresentadas palavras. Na condição com máscara, cada palavra era precedida e rapidamente seguida por uma 'máscara' que consistia em um conjunto de tiras, e assim ela só surgia na tela por 29 milésimos de segundo. Na condição sem máscara, a segunda máscara era removida, de modo que a palavra ficava mais tempo na tela. Assim, as palavras não mascaradas entravam na percepção consciente do paciente, mas as palavras mascaradas não entravam, e os pesquisadores puderam comparar a atividade cerebral associada ao processamento consciente e inconsciente de palavra.

Cada um dos pacientes realizou um total de 548 dessas experiências nas quais as palavras com e sem máscara eram apresentadas aleatoriamente, e a atividade cerebral associada a cada tipo de estímulo era registrada usando-se eletrodos intracranianos colocados em 176 diferentes lugares da superfície de seus cérebros. As reações iniciais às palavras com e sem máscara foram muito similares - os dois tipos de estímulo evocavam atividade disseminada, que era registrada por eletrodos em todos os quatro lobos do cérebro.Os efeitos com máscara foram registrados predominantemente nas áreas do córtex visual na parte de trás do cérebro, e os efeitos sem máscara no córtex frontal.

Descobriu-se que as reações às palavras mascaradas começavam antes daquelas evocadas pelas palavras não mascaradas, mas decaíam rapidamente, primeiro no córtex visual e depois no frontal. As reações iniciais às palavras sem máscara duravam mais, e eram seguidas por uma atividade elétrica sincronizada por quase todo o cérebro, que oscilava com uma frequência de pico de 20 ciclos por segundo e foi registrada na janela de tempo (no intervalo) de 200 a 500 ms. Um modelo matemático aplicado aos dados mostrou que as primeiras reações corticais visuais às palavras sem máscara, mas não às com máscara, levava a um aumento da potência dos sinais registrados a partir dos eletrodos do córtex frontal.

Previsivelmente, os autores concluiram que a percepção consciente tem uma arquitetura funcional altamente complexa, mais do que um único marcador. Eles também sugerem que seus achados apoiam o modelo de espaço global de trabalho da consciência. De acordo com esse modelo, a informação é inicialmente processada em múltiplos módulos que atuam em paralelo, e só irá entrar na percepção consciente se estiver representada em uma área sensorial, tal como o córtex visual; se persistir por tempo suficiente, e for suficientemente intensa, esntrará em um segundo estágio de processamento no córtex préfrontal e numa rede distribuida mais ampla. Finalmente, essa atividade de rede deve ser amplificada para que 'acenda' e transmita seus conteúdos em um padrão auto-sustentado que reverbera por todo o cérebro, e é experimentado como 'consciência'.

Realmente, os dados se ajustam bastante bem nesse modelo. Tanto as palavras com máscara como as sem máscara evocaram atividade disseminada por todo o cérebro, mas a reação às palavras sem máscara foi mais intensa - foi registrada por 68% dos eletrodos, ao passo que a reação às palavras com máscara foi registrada por apenas 24% deles. O efeito inicial sem máscara também durou mais, e foi medido predominantemente no córtex frontal. A atividade sincronizada que se seguiu reflete uma troca de informações de amplo espectro através de uma extensa rede de estruturas corticais. Assim, a reação do cérebro às palavras sem máscara rapidamente se extinguiu e a atenção se voltou, ao invés, para as palavras sem máscara. As reações a estas foram amplificadas e comunicadas ao espaço global, onde acenderam-se para produzir uma chama de percepção consciente.

Gaillard, R. et al (2009). Converging Intracranial Markers of Conscious Access. PLoS Biology. DOI: 10.1371/journal.pbio.1000061.