Abaixo está a tradução de um artigo/entrevista de Dehaene ao Scientific American, publicado em 17 de novembro de 2009. Depois de casar com a Ghislaine, o homem ficou encapetado...
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Neuroscientist Stanislas Dehaene explains his quest to understand how the mind makes sense of written language
Stanislas Dehaene ocupa a cadeira de Experimental Cognitive Psychology no Collège de France, e também é diretor da INSERM-CEA Cognitive Neuroimaging Unit at NeuroSpin, o mais avançado centro de pesquisas em neuroimagem da França. É mais conhecido por sua pesquisa sobre a base cerebral dos números, popularizada em seu livro The Number Sense. Em seu novo livro, Reading in the Brain, ele descreve sua jornada para entender um feito notável que a maioria de nós considera natural: traduzir marcas em uma página (ou em uma tela) para linguagem. Recentemente, ele conversou com o editor de Mind Matters (seção do Scientific American), Gareth Cook.
COOK: Como v. se interessou pela neurociência da leitura?
DEHAENE: Um dos meus interesses mais antigos é como o cérebro humano se modifica pela educação e pela cultura. Aprender a ler parece ser uma das mais importantes mudanças que impomos ao cérebro de nossas crianças. O impacto que isso tem sobre nós é tantalizante. Desperta questões fundamentais sobre como o cérebro e a cultura interagem.
Quando comecei a fazer pesquisas experimentais nesse campo, utilizando diferentes ferramentas à minha disposição (do comportamento aos pacientes, fMRI, potenciais evocados [ERP], e até eletrodos intracranianos), fiquei surpreso porque sempre encontrávamos as mesmas áreas envolvidas no processo de leitura. Comecei a imaginar mesmo como era possível que nosso cérebro pudesse se adaptar à leitura, dado que obviamente ele nunca evoluiu para esse propósito. A pesquisa à procura de uma resposta gerou esse livro. Afinal, a leitura nos força a propor uma visão bem diferente do relacionamento entre cultura e cérebro.
COOK: O que é esse 'novo relacionamento'? .
DEHAENE: Uma visão clássica em ciência social, ainda que frequentemente implícita, é que o cérebro humano, à diferença do cérebro de outros animais, é uma máquina de aprender que essencialmente pode se adaptar a qualquer tarefa cultural nova, não importa sua complexidade. Nós humanos nos liberaríamos de nossos instintos do passado e seríamos livres para inventar formas culturais inteiramente novas.
O que estou propondo é que o cérebro humano é um órgão muito mais sujeito às circunstâncias (constrained) do que pensamos, e que isso estabelece fortes limites sobre a amplitude de formas culturais possíveis. Essencialmente, o cérebro não evoluiu para a cultura, mas a cultura evoluiu para poder ser apreendida pelo cérebro. Através de suas invenções culturais, a humanidade procurou constantemente por nichos específicos do cérebro, se existe um espaço de plasticidade que possa ser explorado para se 'reciclar' uma área cerebral e fazer um novo uso dela. Leitura, matemática, uso de ferramentas, sistemas religiosos - tudo isso poderia ser visto como instâncias de uma reciclagem cortical.
É claro que esta visão da cultura como um jogo de Lego circunstanciado não é nenhuma novidade. Ela está profundamente relacionada à visão estruturalista da antropologia, como exemplificam Claude Levi-Strauss e Dan Sperber. O que estou propondo é que as estruturas universais que sempre aparecem através das culturas estão, de fato, relacionadas em última análise a sistemas cerebrais específicos.
No caso da leitura, as formas de nossos sistemas de escrita desenvolveram-se na direção de uma simplificação progressiva, permanecendo ao mesmo tempo compatíveis com o esquema de codificação visual que está presente em todos os cérebros de primatas. Uma descoberta fascinante, feita pelo pesquisador americano Marc Changizi, é que todos os sistemas de escrita do mundo utilizam o mesmo conjunto de formas básicas, e que todas essas formas já fazem parte do sistema visual de todos os primatas, porque também são úteis para a codificação de cenas visuais naturais. O cérebro do macaco já contém neurônios que respondem preferencialmente a um 'alfabeto' de formas que inclui T, L e Y. Nós apenas 'reciclamos' essas formas (e a parte correspondente do córtex) e as transformamos em um código cultural para a linguagem.
COOK: No livro, v. descreve uma parte do cérebro como a 'caixa de letras'. Poderia explicar o que quer dizer com isso?
DEHAENE: Este é o nome que dei a uma região do cérebro que reage sistematicamente sempre que lemos palavras. Está no hemisfério esquerdo, na face inferior (inferior face), e pertence à região visual que nos ajuda a reconhecer nosso meio ambiente. Essa região particular é especializada em caracteres escritos e palavras. O fascinante é que é o mesmo local em todos nós - seja se lemos chinês, hebraico ou inglês, se aprendemos pelo método whole-language ou phonics, é uma região individual do cérebro que assumiu a função de reconhecer a palavra visual.
COOK: Mas sendo a leitura uma invenção relativamente recente, o que é que a 'caixa de letras' fazia antes de termos uma linguagem escrita?
DEHAENE: Uma excelente pergunta - nós realmente não sabemos. Toda a região na qual esta área se insere está envolvida no reconhecimento visual invariante - ajuda-nos a reconhecer objetos, rostos e cenários, a despeito do ponto de vista particular, iluminação e outras variações superficiais.
Nós começamos a fazer experimentos de imagem cerebral com analfabetos, e descobrimos que essa região, antes de reagir a palavras, tem uma preferência por figuras de objetos e rostos. Estamos descobrindo também que essa região está especialmente sintonizada a pequenas características apresentadas nos contornos de formas naturais, como a forma de 'Y' em galhos de árvores. Minha hipótese é que nossas letras surgiram a partir da reciclagem dessas formas em um nível cultural. O cérebro não teve tempo suficiente de evoluir 'para' a leitura - então os sistemas de escrita evoluiram 'para' o cérebro!
COOK: Como é que nossas habilidades cerebrais, e limites, dão forma a outras atividades humanas, digamos, a matemática?
DEHAENE: Eu dediquei um livro inteiro, The Number Sense, a nossas intuições nativas dos números, e como elas formam nossa matemática. Basicamente, herdamos de nossa evolução apenas um senso rudimentar de número. Nós o compartilhamos com outros animais, e mesmo bebês já o têm nos primeiros meses de vida. Entretanto, ele é apenas aproximado e não-simbólico - não permite que distingamos 13 de 14 objetos. Ainda assim, ele deu à humanidade o conceito de número, e então aprendemos a expandí-lo com símbolos culturais como dígitos e palavras de contagem, chegando assim a uma maneira mais precisa de fazer aritmética.
Nós ainda encontramos traços desse sistema evolutivamente antigo sempre que fazemos aproximações, algumas vezes bastante irracionalmente - por exemplo, quando desperdiçamos mil dólares na compra de um apartamento (porque parece uma pequena porcentagem do total), ao mesmo tempo que barganhamos duramente para comprar um tapete por 40 dólares, ao invés de 50.
A matemática superior também deve estar circunstanciada da mesma maneira por nossa caixa evolutiva de ferramentas. Os números complexos, por exemplo, foram chamados de 'imaginários' e considerados imposíveis de se entender até que um matemático descobriu que eles poderiam ser descritos intuitivamente como um plano - um conceito de fácil apreensão pelo cérebro.
COOK: O que é que nos diz essa pesquisa sobre como a leitura deveria ser ensinada? E ela nos diz alguma coisa, falando mais geralmente, sobre como educar melhor?
DEHAENE: Meus dois livros, The Number Sense e Reading in the Brain, apontam para o fato de que crianças pequenas são mais competentes do que pensamos. Aprender não é 'preencher a folha em branco da mente', como disse John Locke. Mesmo para uma atividade tão nova como a leitura, nós não aprendemos a partir do zero, e sim fazendo modificações mínimas em nossos circuitos cerebrais, aproveitando sua estrutura pré-existente. Desse modo, os professores e os métodos de ensino deveriam prestar mais atenção à estrutura existente do cérebro e da mente da criança.
No caso da leitura, bem concretamente, como explico no livro, temos hoje muitas evidências de que a abordagem da whole-language nada tem a ver com a maneira como o nosso sistema visual reconhece as palavras escritas - nosso cérebro nunca se vale dos contornos gerais da palavras, ele antes as decompõe em todas as suas letras e grafemas em paralelo, subliminalmente e em alta velocidade, dando-nos assim uma ilusão de leitura da palavra toda. Os experimentos sugerem até que o método da whole-language pode orientar o aprendizado para a região errada do cérebro, que é simétrica à área de forma visual da palavra do hemisfério direito! Precisamos alimentar nossa pedagogia com nossa melhor neurociência - e também precisamos desenvolver pesquisas em educação baseadas em evidências, usando experimentos em sala de aula para verificar nossas deduções sobre como os métodos de ensino realmente funcionam na prática.
A teoria, os experimentos com os circuitos neurais de leitura e a pesquisa pedagógica - todos apontam atualmente para a superioridade dos métodos de ensino (com base em) fonema-grafema.
COOK: O que está contecendo no cérebro de um disléxico? Eles estão lendo de maneira diferente, ou apenas mais devagar?
DEHAENE: O cérebro disléxico apresenta um conjunto desorganizado de circuitos no lobo temporal esquerdo. Na maioria das crianças disléxicas, o circuito fonológico do hemisfério esquerdo parece sutilmente desorganizado, e isso parece ser a causa de uma falha em aprender a interconectar apropriadamente o reconhecimento visual das letras com os sons da fala. Como resultado, sua área de forma-da-palavra não se desenvolve completamente, ou não na velocidade normal, e elas continuam e ler serialmente, letra por letra ou chunk por chunk ('bloco'), em uma idade na qual a leitura paralela já está bem estabelecida em leitores normais.
Entretanto, nunca devemos nos esquecer que existe grande heterogeneidade na dislexia - então, provavelmente algumas crianças passam por outras dificuldades, por exemplo, relacionadas à organização espacial da palavra. Algumas crianças parecem misturar a esquerda e a direita, ou ser incapazes de se concentrar sequencialmente nas letras da esquerda para a direita sem errar, e isto pode ser causa adicional da dislexia, ainda que com menos frequência do que o problema fonológico.
COOK: Se o cérebro de um disléxico for organizado de maneira diferente, será que isso sugere que ele pode ter outras habilidades - ou a dislexia é apenas um dano (impairment)?
DEHAENE: Isso não é bem conhecido, mas fiquei intrigado com pesquisas recentes que indicam que as crianças e os adultos disléxicos podem ser melhores em tarefas de detecção simétrica - eles têm uma habilidade maior para notar a presença de fatores simétricos, e as evidências sugerem até que isso foi útil em um grupo de astrofísicos para detectar o espectro simétrico dos buracos negros!
A minha teoria é que o reconhecimento por espelho é uma das funções que temos que 'desaprender' parcialmente quando aprendemos a ler - é uma característica universal do cérebro dos primatas que, infelizmente, é inapropriada para nosso alfabeto, onde abundam as letras p, q, d e b. Conseguindo de alguma forma manter essa habilidade, os disléxicos podem estar de certo modo em vantagem em tarefas visuais, espaciais ou mesmo matemáticas.
Mais geralmente, estamos tocando aqui na questão muito interessante de se a reciclagem cultural nos faz perder algumas habilidades que em certa época foram úteis em nossa evolução. O cérebro é um sistema finito, então ainda que existam poderosos benefícios na educação, também pode haver alguma perda. Atualmente estamos fazendo experiências com índios da Amazônia, em parte para testar suas habilidades nativas e se, em alguns domínios como geometria e navegação espacial, eles podem não ser tão bons como nós.
COOK: Tendo feito todas essas pesquisas, v. se vê lendo dferentemente hoje, ou experimentando (a leitura) de modo diferente?
DEHAENE: Na verdade, não - a leitura se torna tão automática a ponto de não se distinguir: enquanto leitor com perícia, você se concentra na mensagem, e não presta mais atenção nos milagres que são executados pelo seu cérebro! Mas eu sempre fico admirado quando vejo crianças decifrarem suas primeiras palavras - o orgulho em seus rostos é um testemunho vivo das maravilhas da leitura.
Um estudo diz que os humanos podem contar antes que possam falar.
Por Steven Rose.
Steven Rose é neurobiólogo, professor de biologia e diretor do Brain and Behaviour Group (The Open University), autor de Lifelines: Biology Beyond Determinism; The Making Of Memory, co-autor de Not in Your Genes e editor de From Brains To Consciousness.