Viktoria Mullova, que juntamente com Itzhak Perlman é o que esse universo entrópico oferece de melhor com relação a solistas de violino no momento, gravou as Sonatas e Partitas de JS Bach, BWV 1001-1006. Os links são um presente do blog PQP Bach, e estão em http://pqpbach.opensadorselvagem.org/page/2/ . VM colocou em seu site um texto sobre a gravação do disco:
“Esta gravação das Sonatas e Partitas é um importante marco em uma jornada interminável. Sempre tive uma ligação muito estreita com a música de Bach, e desde cedo senti que ela teria um papel fundamental em minha vida. A despeito disso, aproximar-me do mundo de Bach e realmente entendê-lo não foi fácil nem desprovido de longos períodos de desânimo.
Durante muitos anos, ainda que eu estivesse tocando e estudando estas obras regularmente, nunca consegui encontrar qualquer princípio ou caminho que permitisse expressar meus sentimentos através dessa música.
Quando eu estava no conservatório, em Moscou, meus professores me forneceram um conjunto de regras bastante rigorosas para tocar a música de Bach: elas se baseavam numa abordagem bem aceita na época, que combinava um som bonito e padronizado, uma articulação uniforme, um fraseado longo, se possível, e um vibrato contínuo e regular em cada nota, imitando, diziam eles, o de um órgão imaginário. Compreendo que a menção desses critérios hoje em dia possa despertar um sorriso, mas eles dão uma boa idéia da estética musical na qual eu me fundamentava. Durante aqueles anos, minhas Sonatas e Partitas tornaram-se rígidas, monótonas e até mesmo de difícil execução, porque não haviam me dado os princípios básicos para entender o texto barroco. Costumava tocá-las com bem pouca articulação, e sem a distinção entre os tempos fortes e fracos que é tão naturalmente ligada aos ataques do arco. Mas acima de tudo, eu não entendia as relações harmônicas, que são fundamentais para se ter um sentimento de liberdade e envolvimento com o tema musical. Tentei compensar todos esses problemas estudando muito, mas a coisa toda me parecia muito difícil e fisicamente impossível de sustentar.
Então deixei meu país, e iniciou-se um período em que eu viajava constantemente e apresentava grande número de concertos. Isto significava uma repetição infindável de algumas peças, e um bom tempo sozinha estudando, com pouco tempo para preparar um repertório novo e aprofundar a compreensão da música que eu conhecia, ou achava que conhecia.
Foi quando eu estava em Paris certa vez, ensaiando, que tive a grande e inesperada sorte de encontrar Marco Postinghel, um instrumentista de fagote e de continuo. Primeiro ele derrubou as poucas certezas que eu tinha sobre música barroca, e então, graças a uma amizade que passei a prezar muito, levou-me a viagem maravilhosa mas exigente que afinal me levou a esta gravação. Lembro-me que na primeira tarde ele me revelou mais sobre música antiga no intervalo de poucas horas do que eu jamais tinha ouvido ou imaginado. Ninguém, anteriormente, tinha usado tantas evidências para me explicar como o discurso musical, particularmente em Bach, é sustentado por múltiplos elementos que estão todos interconectados: impulso harmônico, articulação, polifonia, contraponto, forma e assim por diante. Ele explicou tudo com um entusiasmo contagiante. Subitamente percebi que não tinha tido uma preparação como artista como havia tido para ser instrumentista, e que eu precisava de um período de reflexão e estudo para preencher esse hiato. Imediatamente, cancelei uma gravação já programada das sonatas para violino e cravo de Bach e comecei a estudar e explorar como louca tudo que fosse relacionado à música antiga. Li muita música de compositores como Biber, Leclair, Tartini, Corelli, Vivaldi e muitos outros, sentindo que isso me ajudaria a entender melhor a música de Bach.
Ouvi incontáveis concertos e gravações de artistas como Harnoncourt, Gardiner, Giovanni Antonini e seu maravilhoso conjunto ‘Il Giardino Armonico’, e Ottavio Dantone, um dos maiores intérpretes de Bach que conheci, e fiquei totalmente cativada e atraída pelo que ouvi. Com essa inspiração nos ouvidos e no coração, ainda com a assistência de meu amigo Marco, comecei a estudar novamente o repertório barroco, agora de forma sistemática.
Comecei com um instrumento moderno, e à medida que meu entendimento da estética do século 18 aumentou passei a sentir – com bastante naturalidade - a necessidade de mudar para cordas de tripa e arcos barrocos. Pouco a pouco, os músicos que eu tanto admirava e que tanto haviam me ajudado em minha investigação começaram a me convidar para tocar em concertos com eles, e isso foi muito emocionante. Esta injeção de confiança da parte deles levou-me a estudar ainda mais intensamente, e a tornar o repertório barroco uma parte central de minha vida artística. Tanto é que tocar Bach tornou-se parte de meu bem-estar espiritual e emocional (uma experiência que acho bem parecida com meditação).
Hoje, quando ouço minhas antigas gravações de Bach, ainda fico muito admirada com a enorme transformação ocorrida. Reconheço a violinista, mas não a musicista. Estou ciente de que continuar a tocar e estudar as obras do gênio de Bach é um processo de exploração infindável, e que um dia eu poderei achar esta gravação surpreendente e distante também! Mas espero que ela testemunhe a seriedade, o respeito e o amor com os quais tentei abordar essa música intemporal”.
Viktoria Mullova, 2009
“Esta gravação das Sonatas e Partitas é um importante marco em uma jornada interminável. Sempre tive uma ligação muito estreita com a música de Bach, e desde cedo senti que ela teria um papel fundamental em minha vida. A despeito disso, aproximar-me do mundo de Bach e realmente entendê-lo não foi fácil nem desprovido de longos períodos de desânimo.
Durante muitos anos, ainda que eu estivesse tocando e estudando estas obras regularmente, nunca consegui encontrar qualquer princípio ou caminho que permitisse expressar meus sentimentos através dessa música.
Quando eu estava no conservatório, em Moscou, meus professores me forneceram um conjunto de regras bastante rigorosas para tocar a música de Bach: elas se baseavam numa abordagem bem aceita na época, que combinava um som bonito e padronizado, uma articulação uniforme, um fraseado longo, se possível, e um vibrato contínuo e regular em cada nota, imitando, diziam eles, o de um órgão imaginário. Compreendo que a menção desses critérios hoje em dia possa despertar um sorriso, mas eles dão uma boa idéia da estética musical na qual eu me fundamentava. Durante aqueles anos, minhas Sonatas e Partitas tornaram-se rígidas, monótonas e até mesmo de difícil execução, porque não haviam me dado os princípios básicos para entender o texto barroco. Costumava tocá-las com bem pouca articulação, e sem a distinção entre os tempos fortes e fracos que é tão naturalmente ligada aos ataques do arco. Mas acima de tudo, eu não entendia as relações harmônicas, que são fundamentais para se ter um sentimento de liberdade e envolvimento com o tema musical. Tentei compensar todos esses problemas estudando muito, mas a coisa toda me parecia muito difícil e fisicamente impossível de sustentar.
Então deixei meu país, e iniciou-se um período em que eu viajava constantemente e apresentava grande número de concertos. Isto significava uma repetição infindável de algumas peças, e um bom tempo sozinha estudando, com pouco tempo para preparar um repertório novo e aprofundar a compreensão da música que eu conhecia, ou achava que conhecia.
Foi quando eu estava em Paris certa vez, ensaiando, que tive a grande e inesperada sorte de encontrar Marco Postinghel, um instrumentista de fagote e de continuo. Primeiro ele derrubou as poucas certezas que eu tinha sobre música barroca, e então, graças a uma amizade que passei a prezar muito, levou-me a viagem maravilhosa mas exigente que afinal me levou a esta gravação. Lembro-me que na primeira tarde ele me revelou mais sobre música antiga no intervalo de poucas horas do que eu jamais tinha ouvido ou imaginado. Ninguém, anteriormente, tinha usado tantas evidências para me explicar como o discurso musical, particularmente em Bach, é sustentado por múltiplos elementos que estão todos interconectados: impulso harmônico, articulação, polifonia, contraponto, forma e assim por diante. Ele explicou tudo com um entusiasmo contagiante. Subitamente percebi que não tinha tido uma preparação como artista como havia tido para ser instrumentista, e que eu precisava de um período de reflexão e estudo para preencher esse hiato. Imediatamente, cancelei uma gravação já programada das sonatas para violino e cravo de Bach e comecei a estudar e explorar como louca tudo que fosse relacionado à música antiga. Li muita música de compositores como Biber, Leclair, Tartini, Corelli, Vivaldi e muitos outros, sentindo que isso me ajudaria a entender melhor a música de Bach.
Ouvi incontáveis concertos e gravações de artistas como Harnoncourt, Gardiner, Giovanni Antonini e seu maravilhoso conjunto ‘Il Giardino Armonico’, e Ottavio Dantone, um dos maiores intérpretes de Bach que conheci, e fiquei totalmente cativada e atraída pelo que ouvi. Com essa inspiração nos ouvidos e no coração, ainda com a assistência de meu amigo Marco, comecei a estudar novamente o repertório barroco, agora de forma sistemática.
Comecei com um instrumento moderno, e à medida que meu entendimento da estética do século 18 aumentou passei a sentir – com bastante naturalidade - a necessidade de mudar para cordas de tripa e arcos barrocos. Pouco a pouco, os músicos que eu tanto admirava e que tanto haviam me ajudado em minha investigação começaram a me convidar para tocar em concertos com eles, e isso foi muito emocionante. Esta injeção de confiança da parte deles levou-me a estudar ainda mais intensamente, e a tornar o repertório barroco uma parte central de minha vida artística. Tanto é que tocar Bach tornou-se parte de meu bem-estar espiritual e emocional (uma experiência que acho bem parecida com meditação).
Hoje, quando ouço minhas antigas gravações de Bach, ainda fico muito admirada com a enorme transformação ocorrida. Reconheço a violinista, mas não a musicista. Estou ciente de que continuar a tocar e estudar as obras do gênio de Bach é um processo de exploração infindável, e que um dia eu poderei achar esta gravação surpreendente e distante também! Mas espero que ela testemunhe a seriedade, o respeito e o amor com os quais tentei abordar essa música intemporal”.
Viktoria Mullova, 2009