Em 1965, a casa Éditions du Seuil (Paris) publicou De L’Interprétation – Essai sur Freud, de Paul Ricoeur. “Antes de tudo, este livro é dedicado a Freud, e não à psicanálise”, diz Ricoeur, e justifica: “Nele faltarão duas coisas: a própria experiência analítica e uma apreciação das escolas pósfreudianas”. Ele aborda a obra de Freud “como um monumento de nossa cultura, um texto no qual nossa cultura está expressada e compreendida” (p. xi). No próprio título do primeiro capítulo, Linguagem, Símbolo e Interpretação, Ricoeur indica seus pontos básicos de abordagem. A linguagem é o fator unificante: “Parece-me que atualmente há uma área na qual coincidem todas as investigações filosóficas: a da linguagem. Ela é o terreno comum das investigações de Wittgenstein, da filosofia linguística inglesa, da fenomenologia surgida através de Husserl, dos estudos de Heidegger, das obras da escola de Bultmann e de outras escolas da exegese do Novo Testamento, dos trabalhos de história comparada das religiões e da antropologia que tratam do mito, do ritual e da crença e, afinal, da psicanálise”.
A complexidade é impressionante, e ainda estamos no primeiro ponto de abordagem. A passagem para diante se dá através da hermenêutica, e Paul Ricoeur escolhe a obra Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos, de 1900) como referência: “...a entrada da psicanálise no debate contemporâneo sobre a linguagem não se deve apenas à sua interpretação da cultura. Fazendo dos sonhos não apenas seu primeiro objeto de investigação, mas também um modelo de todas as expressões disfarçadas, substitutivas e fictícias das aspirações e do desejo humano, Freud nos convida a buscar nos próprios sonhos as diversas articulações entre desejo e linguagem. Em primeiro lugar, não é o sonho, ao ser sonhado, que pode ser interpretado, mas sim o texto do relato do sonho; a análise tenta substituir esse texto por outro, que poderia ser chamado de fala primitiva do desejo. Assim, a análise se move de um significado para outro significado: não são os desejos enquanto tais que estão situados no centro da análise, mas antes sua linguagem”.
Esta cadeia desejo - sonho - relato, que cria o que Ricoeur chama de “campo hermenêutico”, será des-velada (como gostam de expressar os admiradores de Heidegger) pela interpretação, e aqui ele introduz a definição: “Por hermenêutica entenderemos sempre as regras que presidem uma exegese, quer dizer, a interpretação de um texto singular ou de um grupo de signos que possa ser visto como um texto”. Estamos no terreno da semiótica (que é dicionarizada como ‘semântica’ e que procede do grego semeiotikos, observador de signos – ou sinais – e verbaliza ação com semeioun, sinalizar, interpretar como signo – ou sinal). Ricoeur então entrecruza seus outros dois pontos básicos de abordagem, o símbolo e a interpretação (“... é por intermédio do ato de interpretar que o problema do símbolo se inscreve em uma filosofia da linguagem” p. 8), deixando claro na próxima seção do texto, Para uma crítica do símbolo, que distingue sua concepção de símbolo da concepção que dele faz a lógica simbólica. Não deixe de excursionar pela vereda aberta por Ernst Cassirer (que deve a hemoglobina de seu sangue a Kant) e que está brevemente indicada na p. 10. Ricoeur está com os pés no chão ao comentar a Filosofia das Formas Simbólicas, de Cassirer: “(Cassirer) foi o primeiro a chamar a atenção para o problema da reconstrução da linguagem. A noção de forma simbólica, mais do que constituir uma resposta, delimita uma questão, a saber, a questão da composição das ‘funções mediadoras’ no interior de uma função única que Cassirer intitula das Symbolische. ‘O simbólico’ designa um denominador comum de todas as maneiras de objetivar, de dar significado à realidade”.
Só mais uma coisa. Ricoeur pergunta: “Mas por que chamar essa função de simbólica?”. Explica ele: “Acima de tudo, Cassirer escolheu esse termo para expressar a universalidade da revolução copernicana, que substituiu a questão da objetivação através da função sintética da mente pela questão da realidade como ela é em si mesma. O simbólico é a mediação universal da mente entre nós mesmos e o real; acima de tudo, o simbólico indica o caráter não imediato de nossa apreensão da realidade. O uso do termo em matemática, linguística e na história da religião parece confirmar que o ‘simbólico’ tem essa espécie de universalidade”. Agora o leitor está solto nesse torvelinho ( o millwheeling vicociclometer, de James Joyce), e precisa ler a íntegra do livro de Ricoeur.
Freud and Philosophy – An Essay on Interpretation, de Paul Ricoeur.
Yale University Press, 1970
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