sábado, 24 de setembro de 2011

O Atlas Cognitivo

Percebi que o artigo abaixo pode ser de grande importância para os interessados e resolvi traduzir sua parte introdutória, isto é, "Qual é o problema?" e "Para uma ontologia da cognição". Deixo a parte mais específica ("The Cognitive Atlas" em diante) por conta dos leitores mais técnicos e diretamente relacionados.

Russell Poldrack, que é um dos cientistas mais importantes da neurociência cognitiva, aponta para a elaboração de uma ontologia unificada da cognição como solução para uma sobrecarga de "constructos múltiplos" na literatura. Uma informatização eficiente do conjunto de conceitos e definições depende dessa ontologia unificada, e um processo acelerado de "knowledge building" na área depende dessa informatização. A abordagem conciliatória de Poldrack, defendida no último parágrafo dessa nossa postagem/tradução, parece ser a melhor solução - embora em prazo aparentemente mais dilatado. Mais uma coisa: muitos artigos de Poldrack e colegas podem ser encontrados AQUI.

Em 4 de janeiro de 2011 apresentei aos leitores do CLM o livro Handbook on Ontologies, dizendo: "Podemos começar a ler desde já esse manual. Todas as disciplinas, em futuro bem próximo, vão ter que lidar com isso (algumas já estão nessa até o pescoço - física, por exemplo)". O desafio é geral e incontornável.

Mais uma coisa: a "especificação explícita de uma conceitualização", de Gruber (ver no item "Para uma ontologia da cognição", abaixo) aponta para seu artigo A translation approach to portable ontology specifications, de 1993. Gruber já vinha falando sobre isso desde 1991 (em The Role of Common Ontology in Achieving Sharable, Reusable Knowledge Bases. In J. A. Allen, R. Fikes, & E. Sandewall (Eds.), Principles of Knowledge Representation and Reasoning: Proceedings of the Second International Conference, Cambridge, MA, pages 601-602, Morgan Kaufmann.), e é o único autor citado tanto em The Cognitive Atlas como no Handbook on Ontologies. "A translation approach..." está AQUI, e a nave-mãe deste e de muitos artigos dele está AQUI.

Inda outra coisa: não coloquei no texto dessa nossa tradução as referências bibliográficas do original, que são muitas, para não atravancar (não bastassem as minhas NTs...)

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O Atlas Cognitivo: para uma fundamentação epistemológica da neurociência cognitiva

The cognitive atlas: toward a knowledge foundation for cognitive neuroscience

http://www.frontiersin.org/neuroinformatics/10.3389/fninf.2011.00017/full#note10

Russell A. Poldrack, Aniket Kittur, Donald Kalar, Eric Miller, Christian Seppa, Yolanda Gil, D. Stott Parker, Fred W. Sabb and Robert M. Bilder

A neurociência cognitiva visa mapear os processos mentais sobre (o substrato d') a função cerebral, o que solicita que nos perguntemos que "processos mentais" existem e como eles se relacionam com as tarefas que são utilizadas para manipulá-los e medí-los. Este tópico já foi mencionado informalmente em trabalhos anteriores, mas nós propomos que o progresso cumulativo em neurociência cognitiva requer uma abordagem mais sistemática para representar (1) as entidades mentais que estão sendo mapeadas com relação à função cerebral e (2) as tarefas utilizadas para manipular e medir os processos mentais. Nós descrevemos um novo projeto colaborativo aberto que visa fornecer uma fundamentação epistemológica para a ciência cognitiva, chamado Atlas Cognitivo (acessível online em http://www.cognitiveatlas.org), e delinear como este projeto tem potencial para levar a novas descobertas tanto sobre a mente como sobre o cérebro.

"Estamos nos afogando em informações, e sedentos por conhecimento"
- Rutherford B. Rogers
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O campo da neurociência cognitiva (NC) enfrenta um desafio que se torna cada vez mais decisivo: como podemos integrar o conhecimento que temos a partir de um número crescente de estudos provindos de múltiplas metodologias para podermos caracterizar como os processos mentais são implementados no cérebro? A criação de bancos de dados de neuroimagens contendo dados de grande número de estudos forneceu a base para meta-análises poderosas, mas a infraestrutura semântica para uma caracterização dos aspectos psicológicos desses estudos permaneceu bastante defasada com relação à infraestrutura técnica de formação de bancos de dados e de análise dos resultados tomográficos. Nós propomos que um progresso cumulativo em NC exige tal infraestrutura semântica, e que esse problema deve ser abordado através do desenvolvimento de fundamentos epistemológicos dos processos mentais. Aqui, nós delineamos um novo projeto chamado Atlas Cognitivo (AC), que visa desenvolver essa estrutura através de uma criação social e colaborativa de conhecimentos.

QUAL É O PROBLEMA?

O neurocientista cognitivo deseja responder perguntas desse tipo: "Quais são os substratos neurais da memória de trabalho (working memory)?" De acordo com o PubMed, a partir de fevereiro de 2011 foram publicados 26l3 trabalhos de pesquisa que mencionaram "memória de trabalho" conjugadamente com imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), tomografia por emissão de pósitrons (PET), EEG/ERP, ou com análise de lesão. A despeito desta quantidade substancial de pesquisas publicadas, permanece sendo difícil fazer uma integração unificada (coordenada) desses trabalhos para que possamos entender o conceito de "memória de trabalho" e como ele se relaciona à função cerebral, por duas razões principais: ambiguidade da terminologia e falta de distinção entre os processos cognitivos (NT - os constructos; ver abaixo, em Tarefas vs Constructos) e as tarefas utilizadas para medí-los.

Ambiguidade da terminologia

Existe considerável ambiguidade na maneira como os termos são utilizados em NC. Por um lado, muitos termos são utilizados para denotar processos múltiplos e potencialmente distintos. Por exemplo, o termo "memória de trabalho" tem diversas definições diferentes na literatura da neurociência:

- manter a informação online na memória, como se vê em Goldman-Rakic (1995), medindo-a em não-primatas com a utilização de tarefa óculomotora de resposta retardada (delayed response)

- manipulação da informação mantida na memória, como se vê em Baddeley (1992), e medida em humanos com a utilização de tarefas como a tarefa de sequenciamento de letras e números

- memória para aspectos temporalmente variantes de uma tarefa (mais ou menos equivalente ao conceito de memória episódica), como se vê em Olton et al. (1979), e medida em roedores com a utilização de uma tarefa de labirinto (radial arm - "estrela") com diversas localizações de alimentos

Assim, uma pesquisa por "memória de trabalho" pode nos trazer estudos relevantes para diversos processos psicológicos específicos diferentes. Por outro lado, muitos processos são descritos na literatura usando-se diversos termos diferentes. Por exemplo, o primeiro sentido de "memória de trabalho" listado acima frequentemente é descrito usando-se outros termos como "memória de curto prazo" (short-term) ou "manutenção ativa" (active maintenance). Por esta razão, as pesquisas que incluirem apenas "memória de trabalho" não conseguirão aproveitar estudos que utilizem aqueles outros termos, a menos que a pesquisa seja expandida para incluir aqueles outros termos, ao mesmo tempo que expansões assim produzirão números inaceitáveis de documentos irrelevantes.

Tarefas versus Constructos

Há uma tendência persistente na literatura da NC para equacionar tarefas com constructos mentais. Por exemplo, a "tarefa de reconhecimento de objeto" (item recognition task), de Sternberg, que implica a medição de um constructo mental específico (a "memória de trabalho"). Esta combinação de tarefas e constructos ocasiona diversas dificuldades. Primeiramente, a medição de um constructo psicológico exige uma comparação entre condições específicas da tarefa; assim, ainda que o contraste entre condições particulares da tarefa de Sternberg (por exemplo, carga alta vs carga baixa) possa de fato estar associado ao constructo da memória de trabalho, outros contrastes podem não estar (por exemplo, combinação de sonda versus não-combinação de sonda [NT - não sei bem se é isso mesmo; o original é: probe match vs probe mismatch]). Em segundo lugar, qualquer ligação entre tarefas e constructos reflete uma teoria particular sobre como a tarefa é desempenhada; desse modo, equacionar as tarefas com os constructos cria suposições teóricas que podem não ser compartilhadas por toda a comunidade (e além disso, as suposições da comunidade podem estar incorretas). Por exemplo, a tarefa de cor-palavra, de Stroop, às vezes é chamada de "tarefa de inibição". Entretanto, o papel de um processo inibitório ativo na produção do efeito Stroop tem sido questionado por diversos pesquisadores. Similarmente, ao mesmo tempo em que a tarefa N-back é frequentemente chamada de "tarefa N-back de memória de trabalho", sérias questões foram levantadas quanto ao fato de que ela possa medir o constructo de "memória de trabalho". Assim, o equacionamento de tarefas e processos produz bastante confusão quanto ao que está realmente sendo medido por estudos de NC.

Um problema que surge daí é que frequentemente uma tarefa isolada é associada a constructos múltiplos da literatura. Como exemplo, Sabb et al. (2008) utilizaram ferramentas de mineração da literatura para examinar o que foi publicado com relação ao constructo de "controle cognitivo". Eles descobriram que este constructo estava associado a diversos outros constructos (incluindo "memória de trabalho", "inibição de resposta" [response inhibition], "seleção de resposta" [response selection] e "mudança tarefa/conjunto" [task/set switching], e que não havia qualquer tarefa que estivesse associada unicamente ao constructo de "controle cognitivo" na literatura; cada tarefa também estava associada a pelo menos um daqueles outros constructos. Além disso, a associação entre tarefas e constructos na literatura modificava-se com o passar do tempo. Esta falta de consistência no modo de lidar com tarefas e conceitos na literatura torna difícil fazer inferências significativas a partir da literatura existente e limita o valor cumulativo do conhecimento representado nessa literatura.

PARA UMA ONTOLOGIA DA COGNIÇÃO

Precisa-se urgentemente de recursos informatizados que possam resolver os problemas listados acima. Tais recursos nos dariam a capacidade de identificar a utilização particular dos termos, de pesquisar conceitos relacionados e de identificar evidências relevantes da literatura que estejam relacionadas a esses conceitos. Isto permitiria a incorporação inteligente de achados de pesquisas, o que poderia ajudar a superar a sobrecarga de informações que atormenta os pesquisadores hoje em dia. Nós propomos que esse desafio pode ser enfrentado da melhor maneira com o desenvolvimento e uma bem difundida implementação de uma ontologia para a NC. Em filosofia, "ontologia" refere-se ao estudo da existência. ou do ser. Entretanto, em bioinformática o termo vem sendo cada vez mais utilizado no sentido definido por Gruber (1993), como uma "especificação explícita de uma conceitualização", ou uma base epistemológica estruturada elaborada para sustentar tanto o compartilhamento de conhecimentos como o raciocínio automatizado sobre esses conhecimentos. As ontologias também forneceram a base para uma acumulação eficiente de conhecimentos em biologia molecular e genômica. Um dos exemplos mais conhecidos é a Gene Ontology (GO - ontologia genética), de Ashburner e colegas. Esta ontologia fornece descritores consistentes de produtos genéticos, incluindo componentes celulares (por exemplo, "ribossoma"), processos biológicos (por exemplo, "transdução de sinal") e funções moleculares (por exemplo, "atividade catalítica"). A GO fornece a base sobre a qual são anotados os conjuntos de dados referentes a função, o que evitará o corriqueiro problema de diferentes pesquisadores utilizarem diferentes nomes para descrever a mesma estrutura biológica, ou o mesmo processo biológico, em organismos diversos. Isto também nos dará a capacidade de "varrer" (traverse - no sentido de investigar toda a sua amplitude) a ontologia para descobrirmos regularidades de grande escala através de uma expansão da pesquisa que inclua termos subordinados (NT - "de segunda ordem", acho, ou ordens mais inferiores) da ontologia. Existem ferramentas cada vez mais poderosas construidas em torno das ontologias, como a GO; tendo-se um conjunto de dados (como o padrão de expressão genética), essas ferramentas fornecem uma ampla gama de funções, tais como a comparação de bancos de dados genéticos que se baseiam na similaridade de seus padrões GO de anotação e a extração de novos fatos biológicos a partir do texto de artigos. Ontologias também foram desenvolvidas em diversos outros domínios da neurociência; as ontologias da estrutura cerebral, bem desenvolvidas, são as mais relevantes para a NC.

Um grande conjunto de pesquisas em ciência cognitiva originou o desenvolvimento de detalhadas teorias domínio-específicas (NT - ou específicas de/para domínios) dos processos mentais, mas pouco esforço tem sido feito para se caracterizar sistematicamente como esses processos são definidos e como eles se ajustam uns com os outros em uma estrutura mais ampla. Em parte, isso provavelmente reflete o caráter funcionalista da psicologia moderna, que surgiu em reação à abordagem estruturalista do século 19 (por exemplo, como na "psicologia das faculdades" que foi empregada pelos frenologistas). Foram feitas algumas tentativas em "teorias unificadas da cognição", como a ACT-R, de Anderson (Adaptive Control of Thought—Rational), e a SOAR, de Newell (NT - Historically, Soar stood for State, Operator And Result, because all problem solving in Soar is regarded as a search through a problem space in which you apply an operator to a state to get a result. Over time, the community no longer regarded Soar as an acronym: this is why it is no longer written in upper case), mas estas abordagens tratavam primariamente do desenvolvimento de princípios computacionais unificadores gerais, mais do que de uma caracterização sistemática da ampla gama de processos cognitivos.

Outros vocabulários remanescentes, como o MeSH (medical subject headings - títulos médicos por assunto), trazem algum conteúdo relevante para a NC, mas têm sérias limitações. Por exemplo, a hierarquia do MeSH para "Cognição" inclui apenas os seguintes conceitos: Consciência (Awareness; alguns traduzem como "percepção" - depende do contexto), Dissonância Cognitiva, Compreensão, Consciência (Consciousness), Imaginação e Intuição. Estes termos não apresentam qualquer relação significativa com a atual estrutura conceitual da ciência cognitiva. Além disso, os termos do MeSH misturam processos mentais (por exemplo, "compreensão") com fenômenos experimentais (por exemplo, "ilusões") e com termos fora de uso como "programação neurolinguística" (mais bem caracterizada como pseudo-ciência). Dado que o MeSH é o léxico utilizado para indexar artigos e expandir pesquisas no PubMed, isso sugere que as pesquisas sobre essa literatura poderiam melhorar muito com o uso de vocabulários que reflitam melhor as idéias correntes.

O desenvolvimento de ontologias formais da cognição enfrenta um desafio distinto, em comparação com outros domínios da biologia como neuroanatomia ou função celular: existe muito pouco consenso no campo com respeito às unidades básicas da função mental. Como se espera que uma ontologia formal geralmente expresse os compromissos ontológicos compartilhados por um grupo, isto interpõe um difícil desafio para o desenvolvimento de uma ontologia dos processos mentais. Há duas alternativas nesse caso. A primeira seria seguir adiante e desenvolver uma ontologia única baseada no consenso obtido no interior de um pequeno grupo de indivíduos. Ela teria o benefício de fornecer uma ontologia aprovada pelo consenso de seus arquitetos, mas seria inútil para aqueles que não compartilhassem dos engajamentos ontológicos do grupo. Uma abordagem alternativa, à qual aderimos neste trabalho, é permitir e apreender a discordância para que toda a gama de pontos de vista presentes no campo possa estar representada. Nossa abordagem desse assunto inspira-se no sucesso de projetos colaborativos de "knowledge building" como a Wikipedia, que permite a discussão e a expressão de pontos de vista divergentes a serviço do desenvolvimento de um consenso mais amplo, um consenso que possa ser modificado flexivelmente com o passar do tempo à medida que surjam conhecimentos mais novos.