Este artigo, que poderia ser confundido com um estultilóquio pós-moderno, não o é. Chris Martin tem aqui a legítima aspiração de elaborar uma ontologia, uma reflexão a respeito das múltiplas existências do ser humano corporificado. Um exercício comparativo que se vale da história, das artes e de tudo o que, sendo humano, não lhe é estranho. Sob a premissa de que ser humano é devir, CM começa com alguns parágrafos sobre equilíbro/desequilíbrio. Pequena amostra:
O equilíbrio denota um ponto fixo. O desequilíbrio necessita de um movimento para frente, uma inércia, o futuro tornando-se presente, perpetuamente em processo.
O equilíbrio é uma estrutura provisória e abstrata, uma falsificação do real a serviço do mundo da aparência. A falsidade do equilíbrio é a dissimulação da paz. Por toda parte esta falsa paz, paradoxalmente, ameaça obliterar os corpos: corpos reais, corpos ontológicos, corpos em meio ao devir.
E daí para afirmativas mais cirúrgicas:
O equilíbrio depende da visão. Ver separa, pontua, isola, inculca, abrevia, oblitera. Ver cria uma forma elaborada nos limites, uma violência da exatidão, uma sensação de lâmina. O equilíbrio é impossível sem a abstração do olho, que marca uma distância.
O desequilíbrio não depende de nada além da existência. Ele privilegia o toque, o tato, os modos de sentir sobre os modos de ver. Ainda mais do que o toque, ele privilegia o sinestésico. O desequilíbrio incorpora. O desequilíbrio interpenetra. Ela age com intimidade, proximidade, responsabilidade.
Para a última parte do artigo, A Ordem Corporal, CM reserva o melhor de seus poderes de síntese.
A noção de ordem corporal não necessita do colapso de todas as representações do corpo. Ela reconhece a utilidade prática de tais modelos, mas exige que eles sejam reconhecidos pelo que são - abstrações provisórias. Estas representações não são puramente de natureza social, mas também fisiológica. A imagem do corpo não é uma invenção da publicidade, mas sim um modelo fenomenologicamente útil para se situar o eu no mundo. Sem ela, como nos adverte Merleau-Ponty, não poderíamos coçar nossas costas, muito menos acreditar nelas. O verdadeiro problema é como sua provisoriedade fica obscurecida por sua utilidade, como a escolha de seguir esses modelos, e utilizá-los, torna-se uma escolha feita sem o reconhecimento de haver escolhido. Mais uma vez, cuidado com a duvidosa utilidade da imagem!
Afinal, o que está sendo 'denunciado' aqui? Chris Martin tenta nos precaver contra alguma coisa até aqui esotérica, um espécie de espasmo idiopático (que se manifesta através de causas obscuras ou desconhecidas). Revendo Paul Schilder, Martin nos lembra que Schilder demonstrou como a imagem do corpo é um sistema de partes em perpétuo rearranjo que se vale de partes de outros corpos no interesse de sua própria produção, evitando um psicologismo ao interrogar sua própria integridade para expor deslocamentos e interpenetrações. Nesse ponto, o artigo de Martin dá uma guinada centrífuga em direção a uma ancestralidade digna do monolito negro de A Space Odissey: para investigar uma "identidade estável e unificada", construída em virtude de uma "separação" hipostasiada, nós temos que focalizar o único sentido que por diversas razões se destaca dos outros: a visão, tornada possível pelo clarão do fogo.
Quando os primeiros hominídios se desenvolveram, há uns três milhões de anos, faltavam-lhes três adaptações subordinadas e uma adaptação superior para que se tornassem 'humanos' do modo como entendemos isso atualmente. As três adaptações subordinadas eram as seguintes: movimento bipedal, mãos ágeis e cérebros maiores. A primeira, andar em posição ereta, montou o cenário para nossa obsessão com uma forma particular de hierarquia, a hierarquia vertical. Não só nos tornamos seres verticais como posicionamos nossas maiores ferramentas, ainda não entendidas então como ferramentas, como o ápice dessa verticalidade: nossos olhos e nossos cérebros. A segunda, mãos ágeis, nos deu o conhecimento de ferramentas, do poder das ferramentas e, desse modo, da manipulação. Literalmente, colocaram o mundo à nossa disposição. Com o passar do tempo, também colocaram o mundo à nossa disposição metaforicamente. A última adaptação subordinada, cérebros maiores, nos ajudou a aumentar a utilizar a utilidade das duas anteriores, mas não pôde executar a transformação final sozinha. Para isso precisávamos de uma força elementar.
O fogo, ele mesmo uma ferramenta, permitiu que fizéssemos duas coisas imediatas muito importantes: escapar à predação e à meteorologia. Essas duas forças eram as mais cruciais em manter-nos limitados a uma existência animal. Uma vez fora de ameaças constantes, tivemos tempo de sentar, meditar e fazer algo revolucionário e evolutivo [(r)evolutionary]: nada. Passamos a ter tempo para sentar e deixar que nossos cérebros maiores, com seu crescente conhecimento sobre manipulação, fizesse surgir uma adaptação fantástica, nunca antes, ou desde então, igualada: a imaginação. Como o tempo, ela também se tornou a ferramenta definitiva.
Nesse exato momento, nasceu a arte.
Vamos terminar nosso passeio no meio do caminho. Os meandros oblíquos do texto de Chris Martin prosseguem em direção indeterminada e levam a distopias desinteressantes por excesso de verbalização. Fiquemos por aqui (mas nem por isso deixem de ler o artigo todo):
Schilder afirma: "A imagem corporal é um fenômeno social". É uma contradição que a ordem corporal seja tanto ontológica como social? A contradição é muito importante para a ordem corporal, como o são a coincidência, a variação, a multiplicidade e a interpenetração. Se a ordem corporal não for ontológica e social, ela não é real. Seja através de violência física ou da violência do isolamento e da negligênia, a separação revela uma ausência de compreensão ontológica. Não porque ser ambas implique em equilíbrio. Existe uma assimetria imanente na contradição.
Daí a irregularidade desse ensaio, que começa pelo meio e prossegue sempre de modo oblíquo. Isto não quer dizer que não há conexões íntimas entre partes, e sim que a progressão está sujeita ao momento. Existem processos corporais definidos, mas sempre que você dirigir o foco do específico para o sistêmico você sofre uma inundação de abundância. Nós somos sistemas em "interatividade contínua" sustentada por um "fluxo contínuo" (Schilder). O movimento indefinido e enviezado desses sistemas nos aterroriza à medida que tentamos ordenar nossas vidas de modo que elas reflitam a hierarquia vertical discreta do espetáculo. Schilder descreve um de seus pacientes: "Ele odiava tudo o que pudesse perturbar a simetria do corpo. Tinha medo dos artistas esquisitos dos circos".