O livro Memory, History, Forgetting (La mémoire, l'histoire, l'oubli), de Paul Ricoeur, traz como epígrafe uma frase do filósofo francês (de ascendência russa) Vladimir Jankélévitch (1903- 1985):
He who has been, from then on cannot not have been: henceforth this mysterious and profoundly obscure fact of having been is his viaticum for all eternity.
Aqui está o original:
"Celui qui a été ne peut plus désormais ne pas avoir été : désormais ce fait mystérieux et profondément obscur d'avoir vécu est son viatique pour l'éternité." - V. Jankélévitch, L'Irréversible et la Nostalgie.
Aqui está minha tradução:
"Aquele que foi, a partir de então não pode não ter sido: daí em diante este misterioso e profundamente obscuro fato de ter vivido é seu viático por toda a eternidade".
"Viatique" admite algumas interpretações. Sua acepção original latina de "provisões para viagem" - aparentemente corriqueira - deixa entrever a idéia de um percurso em direção à eternidade e confere movimento a uma concepção congelada em sua dimensão inconcebível. O Robert nos diz: "Littér. Soutien, secours indispensable", isto é, "sustentáculo, apoio, defesa, proteção; recurso indispensável". Para tomar o rumo da eternidade é preciso trazer as marcas do tempo que a vida nos confere intransferivelmente - esse é o viático de Jankélévitch.
O Viático como extrema-unção, ou como sagração
Não há resquício de religião aqui: para a Tōrāh, a eternidade é o olam haba, o mundo que virá. Para o Islã, a eternidade só existe em outro mundo e está disponível no Jardim do Éden para os homens de bem e é mandatória no Inferno para os outros. O latim precede o Cristianismo. Na nota 13 da seção 81 de Ser e Tempo, Heidegger desperta a concepção de "temporalidade infinita" de seu sono estrutural - estou pensando no Aurélio, isto é, estrutura (5) - e "matematiza" esta concepção ao lembrar-nos de seu caráter assintótico. Sean Carroll chama nossa atenção para a "grandeza cosmológica implícita na palavra eternidade" em seu livraço From Eternity to Here.
O mistério básico
A poesia de Jankélévitch equilibra o elefante na ponta de um alfinete: no decurso do tempo humano não há primazia de essência ou de existência, nem tal necessidade. Não estou bem certo sobre o motivo, mas isto me lembra uma frase de Russell Epstein (e vou buscá-la para citar direitinho): "Em seu romance À Procura do Tempo Perdido, Marcel Proust argumenta que as descrições convencionais da fenomenologia da consciência são incompletas porque enfatizam demais as informações sensoriais salientes que dominam cada momento de nossa percepção consciente e ignoram a rede de associações que estão na base de tudo".