domingo, 20 de março de 2011

Entrevista de Brassier na revista Kronos




(na ilustração: Ray Brassier [primeiro à direita do observador, usando óculos], Ian Hamilton Grant, Graham Harman, Quentin Meillassoux - representantes do Realismo Especulativo)

A revista Kronos é de Varsóvia, e eventualmente publica artigos em inglês. Esta excelente entrevista do grande Ray Brassier pode ser lida AQUI, e vou traduzir alguns trechinhos para abrir o apetite dos leitores. Acrescento que sou fã de carteirinha do homem.

KRONOS: O 'niilismo' é um dos conceitos filosóficos mais ambíguos. Qual é sua idéia dele? Você se consideraria um niilista? O niilismo exclui totalmente a religião? O que me diz da fé niilista de Meillassoux, alimentada pela inexistência de Deus?

RB: Muito simplesmente, o niilismo é uma crise de significado. Essa crise é historicamente condicionada, porque aquilo que entendemos como 'significado' é historicamente condicionado. Nós passamos de uma situação na qual o fenômeno do 'significado' era auto-evidente para outra na qual ele se tornou um enigma, e um dos principais focos da investigação filosófica. A tentativa de explicar o que é o 'significado' implica uma profunda transformação de nossa compreensão dele; uma transformação que considero que irá ser tão abrangente como as modificações de nossa compreensão do espaço, do tempo, da causalidade e da vida ocasionadas pela física e pela biologia. A visão pré-moderna do mundo, que durou diversos milênios e incluiu a transição do politeísmo para o monoteísmo, é aquela na qual o mundo e a existência humana são intrinsecamente significantes. (Digo 'é', e não 'foi', porque essa visão do mundo ainda persiste hoje em dia, mesmo entre pessoas de boa escolaridade). Nesta visão do mundo existe uma ordem natural, e ela é compreensível para os seres humanos em suas linhas gerais, ainda que não em cada um de seus detalhes particulares. A religião em geral, mas o monoteísmo em particular, oferece a chave para se decifrar essa ordem natural ao explicar a maior parte (mas não a totalidade) da intenção de Deus ao criar o mundo: Deus é bom, criou-nos à sua imagem, e assim temos que procurar ser bons e seremos recompensados com a felicidade eterna se conseguirmos, ou punidos com o sofrimento eterno se fracassarmos. Deus é a fonte definitiva e a garantia dessa ordem significativa através da qual os seres humanos são capazes de dar sentido às suas vidas em termos de uma batalha entre o pecado e a redenção, o conflito entre o bem e o mal, etc.

O surgimento da ciência natural moderna matematizada, por volta do século 16, marca o ponto no qual esta maneira de tirar sentido de nós mesmos e do mundo começa a se desenvolver. Ela não entra em colapso imediatamente, mas começa a perder sua sanção teórica oficial no discurso da teologia quando a nova ciência começa a minar as bases conceituais mais importantes desta última. No decurso de poucos séculos, a antiga suposição de que tudo existe por uma razão, de que as coisas são intrinsecamente carregadas de propósito e foram projetadas de acordo com um plano divino, é lenta mas sistematicamente desmantelada, primeiro na física, depois na química e eventualmente na biologia, onde (essa antiga suposição) durou mais. O espaço-tempo curvo, a tabela periódica e a seleção natural: nada disso é compreensível em termos narrativos. Galáxias, moléculas e organismos não existem para nada (NT - com qualquer finalidade). Por mais que tentemos, torna-se cada vez mais difícil elaborar uma narrativa racionalmente plausível sobre o mundo que satisfaça nossa necessidade psicológica por histórias que se desenvolvam a partir de um início, através de uma crise e até uma resolução definitiva.

Por certo o 'niilismo', em seu sentido mais amplo, entendido como aquela situação desagradável na qual a vida humana e a existência são condenadas em geral como 'desprovidas de significado' (isto é, 'sem propósito'), certamente é anterior ao desenvolvimento da ciência moderna (pense no Eclesiastes).Mas o surgimento da ciência moderna lhe dá uma importância cognitiva que ele não tinha antes, porque onde o niilismo pré-moderno era uma consequência de nossa impossibilidade de entender - 'Não podemos entender Deus, portanto não existe significado para criaturas de entendimento limitado como nós' - o niilismo moderno vem de seu (NT - da ciência moderna) sucesso sem precedentes - 'Nós entendemos a natureza melhor do que entendíamos, mas esse entendimento não mais requer o postulado de um significado básico'. O que ocorreu nessa reviravolta é que a inteligibilidade se tornou independente do significado: com a ciência moderna, a racionalidade conceitual se desligou das estruturas narrativas que continuam a prevalecer em teologia e na metafísica de propensões teológicas. Isto marca um decisivo passo à frente no lento processo através do qual a racionalidade humana abandonou gradualmente a mitologia, que basicamente é a interpretação da realidade em termos narrativos. O mundo não tem autor, e não existe qualquer história cifrada na estrutura da realidade. Nenhuma narrativa se desenrola na natureza, certamente não aquela narrativa monoteísta tradicional na qual o drama humano de pecado e redenção ocupava o centro do palco, e a humanidade era um espelho de Deus.



Tudo isto pode parecer uma banalidade: não é certo que os existencialistas já tinham entendido isso? Mas a diferença é que os existencialistas ainda achavam ser possível para uma consciência humana prover o significado que estava ausente na natureza: a existência pode não ter significado, mas a tarefa do homem é dar-lhe um significado. Meu argumento é que essa solução não é mais digna de crédito porque está em curso um projeto para se entender e explicar a consciência humana em termos compatíveis com as ciências naturais, termos tais que os significados gerados pela consciência podem eles mesmos ser entendidos e explicados como produtos de processos sem propósito mas perfeitamente inteligíveis, que são ao mesmo tempo neurobiológicos e socio-históricos. Minha afirmativa não é que a ciência teve sucesso em explicar a consciência, mas apenas que já foi feito considerável progresso, e o ônus da prova recai sobre aqueles que insistem em negar tal progresso e que propõem descartar essa tentativa (NT - de explicar a consciência) como sendo impossível por princípio. Já houve muitas dessas tentativas, mas não considero nenhuma delas remotamente convincente, nem deveriam considerar aqueles cientistas que estão realmente ocupados em entender e explicar a mente humana. É claro que muitos pensadores, incluindo alguns cientistas, persistem em tentar arrancar algum tipo de narrativa psicologicamente satisfatória de elementos da moderna visão científica do mundo. Mas esse esforço está fadado ao insucesso porque a própria categoria da narrativa é que foi tornada cognitivamente redundante pela ciência moderna. A ciência não tem necessidade de negar a importância de nossa evidente necessidade psicológica da narrativa; ela apenas a rebaixa de seu status metafísico previamente fundamental para o status de uma 'ficção útil' epistemicamente derivativa.

Alguns podem objetar que existe uma contradição latente entre minha negação da realidade metafísica da ordem narrativa na natureza e meu recurso a uma narrativa do progresso cognitivo na história intelectual. Mas não existe contradição: é perfeitamente possível seguir os passos do progresso explanatório no reino conceitual sem invocar alguma narrativa metafísica duvidosa sobre a inelutável marcha do Espírito para diante. Penso que a leitura reconstrutiva de Hegel por Robert Brandom faz exatamente isso - liberta o ideal normativo do progresso explanatório de sua expansão metafísica, e em última análise mitológica, no interior da história universal do Espírito.

Como Nietzsche, acho que o niilismo é uma consequência da 'vontade de verdade'. Mas à diferença de Nietzsche, não acho que o niilismo culmina com a afirmativa de que não existe verdade. Nietzsche fundiu verdade com significado, e concluiu que já que esse último é sempre resultado do artifício humano, a primeira nada mais é do que uma questão de conveniência. Entretanto, uma vez que a verdade seja descartada, tudo o que resta é a diferença entre fortalecer ou enfraquecer ficções, onde a 'vida' é a fonte fundamental do fortalecimento e árbitro definitivo da diferença entre ficções que promovem a vida e ficções que a depreciam. Como o abandono da verdade enfraquece a razão para se renunciar à ilusão, ele acaba por legitimar a elaboração de narrativas fictícias posteriores, das quais só se exige que comprovem ser 'promotoras da vida'.

Considero-me um niilista precisamente na medida em que recuso esta solução nietzscheana e continuo a acreditar na diferença entre verdade e falsidade, realidade e aparência. Em outras palavras, sou um niilista precisamente porque ainda acredito na verdade, à diferença daqueles cujo triunfo sobre o niilismo se dá às custas do sacrifício da verdade. Acho que é possível entender a falta de significado da existência, e que essa capacidade de entender o significado como um fenômeno regional ou restrito marca um progresso fundamental na cognição.

Quanto a niilismo e religião: ora, a credibilidade racional da religião pode ser criticada sem se evocar a ciência moderna ou o niilismo - Demócrito e Epicuro fizeram isso há uns dois mil anos utilizando argumentos que são válidos até hoje, ainda que os teístas prefiram ignorá-los. Mas, é claro, a irracionalidade da crença religiosa nunca impediu seu florescimento; de fato, é precisamente essa irracionalidade que a imuniza contra a refutação racional, já que a religião é projetada para satisfazer necessidades psicológicas, e não requisitos racionais. Marx estava certo: a religião jamais será erradicada até que se evapore a necessidade dela. Obviamente, essa evaporação terá que ser efetuada tanto pratica quanto cognitivamente.

Não li L'Inexistence Divine, de Meillassoux, então não sei que tipo de argumentos ele utiliza para legitimar a hipótese de um inexistente 'Deus-por-vir'. Estou certo de que esses argumentos devem ser excepcionalmente engenhosos. Mas permaneço cético, já que não vejo qualquer necessidade para essa hipótese. De fato, vejo essa constante fascinação filosófica pelo monoteísmo como profundamente perniciosa e acho que se deve declarar uma moratória para que se evite qualquer 'especulação sobre Deus' por parte dos filósofos. Não acho que seja mera coincidência que a crítica da racionalidade científica da maior parte da filosofia do século 20 caminhe de mãos dadas com uma restauração de temas teológicos. Obviamente a religião satisfaz necessidades humanas profundas, mas ela tem sido uma catástrofe cognitiva que impediu continuamente o progresso epistêmico - em oposição ao revisionismo pernicioso que afirma que o monoteísmo sempre esteve ao lado da ciência e da verdade. O conhecimento humano progrediu a despeito da religião, nunca por causa dela. Os filósofos simplesmente não deveriam ter nada a ver com ela.


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Da Wikipedia
Ray Brassier is a member of the Philosophy faculty at the American University of Beirut, Lebanon, known for his work in philosophical realism. He was formerly Research Fellow at the Centre for Research in Modern European Philosophy at Middlesex University, London, England.

He is the author of Nihil Unbound: Enlightenment and Extinction (...) Brassier is of mixed French-Scottish ancestry, and his family name is pronounced in the French manner.

Along with Quentin Meillassoux, Graham Harman, and Iain Hamilton Grant (
veja a foto que ilustra essa postagem) , Brassier is one of the foremost philosophers of contemporary Speculative Realism interested in providing a robust defense of philosophical realism in the wake of the challenges posed to it by post-Kantian critical idealism, phenomenology, post-modernism, deconstruction, or, more broadly speaking, "correlationism". Brassier is generally credited with coining the term "speculative realism," though Meillassoux had earlier used the phrase "speculative materialism" (matérialisme spéculatif) to refer to his own position.